Alunos cotistas e não cotistas têm o mesmo desempenho na graduação
No aniversário de dez anos da Lei de Cotas, pesquisas demonstram que em pouco tempo estudantes cotistas são capazes de superar defasagem
Quando tinha 18 anos, Anna Clara Soares saiu da sua cidade natal, no interior de Minas Gerais, em direção ao campus da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) para cursar a graduação em Ciências Sociais. A estudante garantiu sua vaga na universidade por meio do Sisu, utilizando a nota do Enem. Hoje, aos 20 anos e já no sexto semestre, não hesita em dizer: conseguiu entrar na universidade graças às cotas.
Anna estudou a vida toda na rede pública de ensino, e, graças à Lei de Cotas, concorreu no vestibular apenas com candidatos que tiveram a mesma trajetória escolar que ela – diferentemente do que aconteceria caso entrasse na categoria “Ampla Concorrência”.
Até este momento, o desempenho da estudante na graduação tem sido exemplar. Ostenta uma média geral que oscila entre 8,7 e 9, conseguiu um estágio na prefeitura de São Paulo e caminha em direção a uma carreira acadêmica.
Entenda o que é a Lei de Cotas e as disputas em torno de sua revisão clicando aqui.
A trajetória de Anna espelha a de tantos outros estudantes que entraram na universidade pública graças à Lei de Cotas, implementada exatamente dez anos atrás, em agosto de 2012. Na época, um dos argumentos daqueles que eram contrários à política era de que a integração de grupos historicamente minoritários no ambiente acadêmico causaria um desnivelamento entre os estudantes, resultando em uma queda na excelência geral das universidades. O tempo e as pesquisas estão aí para provar que este medo é infundado, como mostraremos nesta reportagem.
O GUIA DO ESTUDANTE conversou com especialistas, professores e estudantes de universidades públicas e ouviu a resposta de cada um sobre a pergunta: “há diferença entre o desempenho de estudantes cotistas e não cotistas?”
Desvantagem passageira
“A universidade pode ser um espaço muito dolorido para o estudante cotista”, diz Anna. A jovem conta que ao iniciar o primeiro semestre passou por um árduo período de transições. Além de estar em uma cidade diferente e iniciando uma nova fase da vida, sentia dificuldades em dar conta da alta carga de leituras – com textos, inclusive, em inglês, língua que não domina.
“É muito comum professores, ou a própria universidade, pressupor certas habilidades ou conhecimentos prévios dos alunos. Para mim, a minha maior dificuldade foi, e ainda é, a questão do inglês”, conta Anna, que nunca pôde pagar um curso de idiomas. “Geralmente, para as pessoas que vêm de escola particular ou que têm um outro perfil de renda, o inglês já é não é uma questão, eles entram na faculdade sabendo.”
As adversidades iniciais de Anna na universidade se refletiram no seu desempenho do primeiro semestre. Além da dificuldade com textos estrangeiros, a universitária diz que demorou para conseguir desenvolver um hábito de leitura consistente e a habilidade de ler e escrever de maneira acadêmica – todas características não desenvolvidas durante a sua trajetória escolar.
O que Anna vivenciou nestes primeiros meses é o que pesquisas indicam que seja a trajetória comum entre estudantes cotistas.
Um estudo realizado pela USP acompanhou o desempenho das primeiras turmas com estudantes cotistas desde a sua implementação, em 2018. O resultado do levantamento demonstra que a diferença de desempenho entre os cotistas e não cotistas é quase imperceptível, e só é maior no início da graduação.
“Os não cotistas entram nos primeiros semestres com notas maiores nas avaliações, porém essa diferença vai diminuindo até não existir mais no fim do curso”, afirma Adriano Senkevics, pesquisador do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e especialista em Gestão de Políticas Públicas pela UnB (Universidade de Brasília).
“Podemos dizer que essa melhora ocorre de maneira orgânica, no sentido de que os alunos vão reajustando as suas expectativas e as suas práticas ao longo do curso, compreendendo onde estão as defasagens e procurando suprir as lacunas”, explica.
Um estudo semelhante na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) também mostrou essa adversidade inicial. “A desvantagem inicial em preparo acadêmico, revelada já pelas diferenças de pontuação no Enem, parece ser parcialmente superada ao longo da trajetória universitária de cotistas”, afirma Ana Paula Karruz, doutora em políticas públicas e administração pública pela George Washington University e professora do Departamento de Ciência Política da UFMG.
Mais cotistas, mais qualidade
Anna nunca viu o seu aprendizado na faculdade como superior ou inferior ao de seus colegas não cotistas, mas o considera, sim, diferente.
“Não é porque a gente veio de escolas públicas, que a gente não consegue aprender as coisas ou não consegue desenvolver as habilidades que a academia e o mercado de trabalho pregam”, diz. “Pelo contrário, acredito que pelo fato de as chances para nós serem mais escassas, a gente agarra as oportunidades com muito mais força.”
Para Senkevics, pesquisador do Inep, um dos principais equívocos dos que pregam que a inclusão de cotistas diminui a qualidade das universidades é assumir que o estudante cotista é desqualificado. De acordo com o pesquisador, o aluno que entra por cotas já superou uma série de barreiras anteriores para tornar-se apto a competir por aquela vaga.
“Concluir o Ensino Médio, fazer a prova do Enem e conseguir um resultado competitivo o suficiente já mostra que o perfil do aluno cotista é um estrato que seleciona os mais preparados entre aqueles de baixa renda”, diz. “Quando as cotas são implementadas e diminuem um pouco a nota de corte, não significa que você está colocando para dentro do curso uma pessoa despreparada, significa que você está abrindo espaço para o aluno que é qualificado, mas que sempre morria na praia.”
Uma das mais conceituadas e bem avaliadas universidades brasileiras prova que incluir estudantes de grupos historicamente marginalizados está longe de causar prejuízos à qualidade da instituição. A UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, implementou as primeiras iniciativas relacionadas às cotas ainda em 2008, quatro anos antes da lei federal. Hoje, possui ações afirmativas para estudantes negros, oriundos de escolas públicas, de baixa renda, quilombolas, indígenas, refugiados e, em breve, também para transexuais.
Marcelo Henrique Romano Tragtenberg, professor da Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades da UFSC e integrante de um consórcio de pesquisa para a revisão da Lei de Cotas, defende que a maior inclusão desses grupos só trouxe benefícios à universidade.
“No último ranking da revista Times, a UFSC está em sexto lugar entre as melhores universidades da América Latina”, diz. “A integração de alunos cotistas tem melhorado a qualidade da universidade porque, de forma geral, são alunos muito mais dedicados. Aproveitam a oportunidade para conseguir melhorar a própria perspectiva de vida”, destaca Tragtenberg.
Atualmente, 20% dos formados em Medicina da UFSC são negros, número que reflete a porcentagem de habitantes negros do estado de Santa Catarina.
“A defasagem de entrada, sim, é grande. Mas os estudantes cotistas são os que mais apresentam um aumento no seu desempenho durante a graduação. Nos cursos de Engenharia, a média de nota desses grupos chega no último semestre sendo 0,6 pontos maior do que a dos não cotistas”, explica o professor.
Respaldo institucional e o papel das universidades
Anna Clara, aluna de Ciências Sociais da USP, lembra que ainda no primeiro semestre do curso, quando apresentou maiores dificuldades, participou de um projeto acadêmico que oferecia aulas que ensinavam a fazer fichamento de leituras. Mesmo não sendo uma atividade específica para cotistas, mas aberto para quem quisesse, a aluna ganhou ferramentas que a ajudaram a desenvolver bem essa habilidade.
Iniciativas como estas parecem ser um caminho para viabilizar um nivelamento mais efetivo entre as realidades distintas dos estudantes. Mas não são comuns. Na UFSC, o professor Tragtenberg admite que, mesmo que os desempenhos se corrijam organicamente durante a graduação, não há medidas significativas que ofereçam suporte para os alunos cotistas.
O que há são esforços pontuais, como o de um professor de Engenharia Elétrica que oferece um curso de matemática básica e introdução a cálculo, e cursos intensivos de férias promovidos por estudantes da pós-graduação do Departamento de Matemática.
Recentemente, sob a nova gestão, a universidade tem desenvolvido um programa institucional de apoio pedagógico que é voltado para as áreas sensíveis: Matemática, Bioquímica e Produção Textual.
Senkevics, do Inep, frisa que é papel das universidades desenvolver o acolhimento e a integração dos estudantes cotistas. Para o pesquisador, um exemplo seria as disciplinas de nivelamento que as universidades particulares (que estão há mais tempo habituadas a receber alunos de escolas menos preparadas) oferecem na grade do primeiro semestre.
“A universidade pública precisa perceber que ela não está mais falando somente com aquele aluno que tem um sobrenome tradicional, que vem de uma família escolarizada, que entra na faculdade falando inglês e espanhol, como era antigamente”, afirma o pesquisador.
Anna, que ruma para seus últimos anos como estudante cotista na maior universidade brasileira, diz que enxerga o seu desempenho na faculdade como muito bom, considerando suas notas, e, principalmente, sua participação de forma geral – mas não nega que certos aspectos do caminho são difíceis. “É sempre diferente quando você parte de um lugar de privilégio. Mas eu acredito que a gente traz para a universidade essa vivência distinta das pessoas que o pai, a mãe e a avó fizeram faculdade. A gente não é menos capaz”.