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Descriminalização da maconha: entenda o que muda na prática

Ministros do STF formaram maioria pela descriminalização do porte da droga para uso pessoal. Na prática, no entanto, o uso da droga não foi legalizado

Por Julia Di Spagna
Atualizado em 26 jun 2024, 10h57 - Publicado em 26 jun 2024, 10h30
Mão segurando uma folha de maconha em uma plantação de maconha
Descriminalização da maconha no Brasil e os efeitos sobre o país (Guia do Estudante/Canva/Guia do Estudante)
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O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta terça-feira (25) pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. A maioria dos ministros do supremo entendeu que o artigo da Lei de Drogas que trata do uso pessoal do entorpecente é inconstitucional, por não diferenciar a quantidade de drogas que enquadra uma pessoa como usuária ou como traficante. 

O estopim para o início do julgamento, que começou em 2015 e seguia parado na corte, foi a condenação de um homem por porte de drogas depois de ter sido flagrado com 3 gramas de maconha dentro da cela onde cumpria pena por outro delito, em São Paulo.

O argumento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que recorreu até o caso chegar ao STF, é que considerar o porte de drogas para consumo pessoal como crime fere o direito à liberdade individual e vai contra o princípio da intimidade e da vida privada, previsto no artigo 5º, da Constituição Federal. Além disso, discute-se que o porte não é um afronte à saúde pública, mas apenas à saúde pessoal do próprio usuário.

Vale ressaltar que o que tornou-se descriminalizado é o porte para uso pessoal. Os casos que forem enquadrados como “tráfico de drogas” ainda implicam em pena privativa de liberdade que pode chegar até a 15 anos de reclusão, independentemente do resultado no Supremo.

Mas para se aprofundar no tema é preciso entender algumas questões, como a diferença entre descriminalizar e legalizar; as críticas de especialistas sobre a legislação atual; como a descriminalização impacta o sistema carcerário e a população como um todo; e como outros países têm se posicionado sobre a questão. Pensando nisso, o GUIA DO ESTUDANTE preparou um resumo para te ajudar. Confira: 

Como funciona a política antidrogas do Brasil

Até antes da decisão do STF, o porte de drogas era considerado crime no Brasil, por conta da lei nº 11.343 de 2006, conhecida como a Lei de Drogas, que trouxe uma série de mudanças para crimes relacionados a entorpecentes. Entre elas, a aplicação de medidas educativas e prestação de serviços à comunidade em vez de privação de liberdade para o usuário. Ainda antes dela, uma lei de 1976 dizia que o usuário poderia pegar uma pena de seis meses a dois anos de prisão, além da aplicação de multa.

Um dos maiores problemas dessa legislação, segundo especialistas, é que não havia uma definição específica que diferenciasse o que era uma porção para uso pessoal e o que era quantidade para comercialização – ou seja, que diferenciasse o usuário de drogas de um traficante. Assim, sem critérios objetivos, ficava a critério das autoridades, caso a caso, enquadrar a pessoa em uma das duas categorias.

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“Quando a lei não fixa critério quantitativo, o agente policial que faz o flagrante muitas vezes classifica usuário como traficante”, disse o advogado criminalista Pierpaolo Bottini, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. Devido à grande desigualdade de renda e ao racismo estrutural do país, isso faz com que grande parte das pessoas enquadradas como tráfico sejam pessoas negras de baixa renda.

Dessa forma, além da descriminalização principalmente da maconha, está em pauta os parâmetros para diferenciar consumo e tráfico. Isso porque os estudos apontam aumento do encarceramento no Brasil desde a sanção da lei de 2006. Para se ter uma ideia, uma pesquisa recente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) baseada em mais de 5.000 processos que estão em tribunais de Justiça do país indica que, se fossem adotados critérios quantitativos para definir o uso pessoal (até 25 g de maconha e 10 g de cocaína, no caso), cerca de 30% dos réus por tráfico seriam classificados como usuários.

Descriminalizar X Legalizar

Quando a questão das drogas entra em debate, há muita confusão sobre a diferenciação dos termos e o que, de fato, está sendo discutido no Supremo. 

Descriminalizar um ato ou conduta significa que isso deixará de ser um ato ilícito, ou seja, não haverá punição no âmbito penal. A pessoa não é presa, mas pode haver punições administrativas, como o pagamento de multas, a realização de serviços comunitários ou de cursos oferecidos pelo Estado. O aborto de feto anencefálico é um exemplo de um ato que foi descriminalizado no Brasil. 

Já legalizar significa que o ato ou a conduta serão permitidos pela lei e haverá a regulamentação da prática. Assim, falar em legalização das drogas implicaria em passar para o âmbito legal todo o processo de produção dos entorpecentes, desde o plantio até a comercialização, como já ocorre com bebidas alcoólicas e o tabaco, por exemplo. Vale destacar que, quando se legaliza uma prática, ainda podem ser estabelecidas restrições e condições. No caso do álcool, o consumo é legalizado, não há punição por consumi-lo, mas a venda é proibida para menores de 18 anos e ainda existem regras de produção e venda.

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Em resumo:

  • Descriminalizar: o ato não se torna legal, mas não é tratado como crime. A pessoa não é presa, mas pode ou não sofrer punição administrativa.
  • Legalizar: o ato é permitido e passa a ser regulado por lei.

Impactos da descriminalização na sociedade

O tema é polêmico e existem argumentos contra e a favor da descriminalização. 

Quem é contra a descriminalização argumenta que o uso de drogas não é um direito individual, pois afeta o coletivo. A justificativa é que, na maioria dos casos, a família é diretamente afetada quando há casos de dependências. Esse argumento, porém, não se aplica da mesma forma para todas as substâncias, pois nem todas são igualmente viciantes, nem têm o mesmo poder destrutivo.

Outra preocupação é que, com a descriminalização, o tráfico não seja reduzido e haja o aumento do consumo, do número de usuários e de dependentes por conta da diminuição da percepção de risco da maconha, principalmente entre os jovens.

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Outro ponto levantado por quem é contra a descriminalização é que o Brasil já teria dificuldades para controlar e fiscalizar drogas legais, como o álcool e remédios, e isso deveria servir de alerta para como seria desafiador regulamentar e fiscalizar os mercados de drogas ilícitas. 

Já quem é a favor tem como um dos argumentos que, ao deixar de tratar usuários como criminosos, a questão sairia da esfera penal e iria para a social. Uma das vantagens seria permitir que o indivíduo tivesse acesso ao sistema de saúde para procurar ajuda em vez de ir para a cadeia.

O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, por exemplo, declarou-se a favor da descriminalização das drogas. Durante audiência na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, em abril de 2023, o ministro argumentou que a decisão é parte de uma estratégia de combate ao crime organizado e que o uso de drogas é uma questão de saúde pública, não de natureza criminal. Além disso, em uma entrevista à BBC News Brasil, o ministro afirmou que essa também seria uma forma de reduzir a pressão sobre o sistema carcerário brasileiro.

Hoje, o país tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Em 2018, um terço das prisões masculinas e dois terços das femininas ocorreram por tráfico de drogas, segundo dados do Ministério da Justiça e Secretaria da Administração Penitenciária.

+ Sistema carcerário brasileiro: entenda a situação dos presídios no país

A questão racial também entra em jogo quando se fala sobre a descriminalização do porte. Segundo um levantamento feito pela Agência Pública, pessoas negras são mais condenadas por tráfico do que os brancos, mesmo quando portam menores quantidades de drogas. Para o resultado, foram analisadas 4 mil sentenças de tráfico em São Paulo. 

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“A não existência de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes é um dos grandes motivos de termos um Judiciário e uma polícia que prendem pessoas em função de sua cor de pele e de seu endereço ser ou não na favela”, disse o diretor para a América Latina da Open Society Foundation e ex-secretário Nacional de Justiça, Pedro Abramovay, em entrevista à Folha de S.Paulo.

O perfil dos presos por tráfico é de homens, jovens entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes criminais, segundo a pesquisa “Prisão Provisória e Lei de Drogas”, do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Na conclusão do estudo, os pesquisadores afirmam que “a principal consequência dessa política de combate acaba sendo a geração de uma grande massa de jovens com passagem pela polícia, registros criminais e com os estigmas produzidos pela prisão”. 

O encarceramento em massa também é um dos principais fatores que fortalece o crime organizado, de acordo com pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, como Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, autores do livro “A Guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”. Essa questão foi, inclusive, determinante para alguns países que decidiram descriminalizar ou legalizar as drogas. É o caso do Uruguai. O então presidente José Mujica (2010-2015) afirmava que a estratégia era justamente tirar dos narcotraficantes os lucros que eles obtêm com a venda de drogas e incorporar estes benefícios ao Estado.

Por fim, as pesquisas sobre o entorpecentes, como a maconha, para uso medicinal também entram em xeque. “A descriminalização permitiria que pessoas que desejam se cuidar com produtos de cannabis fizessem isso com segurança e cultivassem determinada quantidade de uma planta que melhora sensivelmente a qualidade de vida delas ou dos filhos”, afirmou o psicólogo da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME), Anderson Matos, em entrevista ao G1.

Contexto mundial atual

Toda essa discussão no Brasil vai ao encontro do que ocorre em outros países. Nos últimos anos, diversas nações alteraram suas políticas de drogas, principalmente as leis sobre maconha, adotando regras para usos medicinais, descriminalização e até legalização do uso recreativo, mas cada uma tem suas peculiaridades, regras e limites. Confira alguns exemplos: 

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Portugal: em 2001, Portugal descriminalizou o uso de todas as drogas. O tráfico é crime e para distinguir o usuário de um traficante, o critério é o limite é de até 25 gramas de cannabis, assim como o cultivo de até seis plantas fêmeas. O consumo em lugares públicos também é proibido.

Argentina: a posse de drogas para o uso pessoal não é um crime, mas não há uma regra ou quantidade mínima para diferenciar os consumidores de produtores, distribuidores e comerciantes.

Uruguai: a posse de maconha para uso pessoal é legalizada, portanto, todo o processo é permitido e regulado pelo Estado: produção, distribuição e comercialização. Para exercer uma dessas atividades, por exemplo, é necessária uma licença. Consumidores também precisam se cadastrar em um sistema (há uma espécie de clube de consumidores) e comprar apenas de determinados estabelecimentos, como farmácias. 

Espanha: também existem esses clubes e seus membros devem pagar uma taxa mensal para consumir cannabis. Porém, é proibido fumar maconha na rua ou em qualquer ambiente público – a ação fica sujeita à multa.

Canadá: por lá, é legalizado o uso da maconha para fins recreativos. A lei prevê que empresas autorizadas pelo governo federal possam plantar a erva e comercializá-las em locais específicos. Também é liberada a pesquisa para usos medicinais. 

Estados Unidos: varia de acordo com o estado. Algumas das políticas adotadas nas regiões que descriminalizaram ou legalizaram a maconha são a pesquisa para fins medicinais e cosméticos, a venda em lojas credenciadas e o consumo doméstico.

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Ministros do STF formaram maioria pela descriminalização do porte da droga para uso pessoal. Na prática, no entanto, o uso da droga não foi legalizado

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