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O que a vitória da esquerda na Bolívia diz sobre a queda de Evo Morales

Quase um ano após a queda de Evo Morales, que ocupava a presidência há treze anos, seu partido volta ao governo com o reconhecimento da oposição e da OEA

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 20 out 2020, 17h00 - Publicado em 20 out 2020, 12h47

Uma muito provável vitória do candidato da esquerda Luis Arce, aliado de Evo Morales e ex-economista do governo, colocou a Bolívia em alerta nos últimos dois dias. Seria uma prova contundente de que Evo de fato sofreu um golpe em novembro do ano passado, quando deixou o poder? Considerando a forma como ele saiu, seus opositores aceitariam agora uma vitória de seu aliado e a volta do MAS (Movimento para o Socialismo) à chefia do Executivo do país?

Ao longo da segunda-feira (19) os temores sobre o assunto foram se atenuando conforme opositores e países vizinhos reconheciam a vitória de Arce, ainda que, oficialmente, a apuração das urnas não tivesse sido encerrada. Diferente do Brasil, a Bolívia realiza as eleições em voto em papel e a contagem dos votos acaba demorando dias. Apesar disso, o resultado já está sendo dado como certo principalmente em função das pesquisas de boca de urna – segundo o instituto de pesquisa Ciesmori, Arce ganharia o pleito com 52,4% dos votos válidos, contra 31,5% de seu principal oponente Carlos Mesa. 

Ao final da tarde de segunda, até mesmo a OEA (Organização dos Estados Americanos), que apresentou um relatório em 2019 afirmando que Evo fraudara as eleições para se reeleger, parabenizou o candidato do MAS pela vitória por meio do secretário-geral Luis Almagro: “O povo da Bolívia se expressou nas urnas. Parabenizamos Luis Arce e David Choquehuanca, desejando êxito em suas futuras funções. Estou certo que, a partir da democracia, saberão forjar um futuro brilhante para seu país. Um reconhecimento ao povo boliviano”. 

Não coincidentemente, a democracia também foi o mote da declaração de Arce ao comemorar a vitória por meio de sua conta no Twitter: “Recuperamos a democracia e retomaremos a estabilidade e a paz social”. 

Mas espera aí, OEA? Recuperação da democracia? Acusações de golpe? Se por algum motivo você ficou por fora do que aconteceu na Bolívia em novembro passado (mês de vestibular, a gente entende), vamos voltar um pouquinho para entender o que era o país há um ano atrás, por que tanta coisa mudou e como as novidades desta semana afetam o Brasil. 

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A queda de Evo Morales

Em 10 de novembro do ano passado, Evo Morales, o primeiro presidente indígena eleito na Bolívia e que há 13 anos ocupava o cargo, renunciou à presidência e deixou seu país às pressas. Na ocasião, ocorriam as eleições que, de fato, só tiveram desfecho neste último final de semana. 

Evo concorria a seu quarto mandato seguido em um pleito eleitoral conturbado: embora a constituição boliviana só permitisse dois mandatos consecutivos, ele já havia conseguido driblar a regra em 2014, sob a justificativa de que seu primeiro mandato ocorreu antes da “refundação” da república da Bolívia. Para concorrer em 2019, valeu-se de um referendo realizado em 2016 que consultou a população sobre a mudança das regras para permitir mais reeleições. O “não” foi maioria, com 51,3%, mas Evo contestou o resultado na Justiça alegando que campanhas difamatórias e a circulação de fake news atrapalharam a consulta. 

Assim, chegou às eleições de novembro do ano passado já sob o olhar vigilante dos opositores e de algumas organizações internacionais como a OEA. Quando a apuração das urnas começou a apontar uma vitória ainda em primeiro turno de Evo, a oposição prontamente levantou a suspeita de fraude nas apurações, e mesmo com a decisão do então presidente de cancelar os resultados e chamar novas eleições, a instabilidade dos dias seguintes sugeria que não havia mais cenário para governar. Evo acabou pressionado a renunciar e sair do país, amedrontado pela perseguição que alguns de seus aliados passaram a sofrer. 

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O caso da prefeita de Vinto filiada ao partido MAS, Patrícia Arce Guzmán, foi talvez o mais emblemático. Guzmán decidiu enviar transporte para que camponeses apoiadores de Evo fossem às ruas protestar contra a renúncia do presidente, e sofreu com a resposta completamente desproporcional de manifestantes da extrema direita. As imagens da prefeita coberta de tinta vermelha, com os cabelos cortados e caminhando descalça pelas ruas de Vinto enquanto recebia ofensas e ameaças circularam por veículos do mundo todo.

Manifestantes contra Evo cortaram o cabelo de prefeita e cobriram seu corpo com tinta vermelhaImagem do Facebook
Manifestantes contra Evo cortaram o cabelo de prefeita Patrícia Arce Guzmán e cobriram seu corpo com tinta vermelha (Facebook/Reprodução)

Em dezembro do ano passado, quando o país já estava sob o governo da autoproclamada presidente interina Jeanine Añez, o Ministério Público emitiu uma ordem de prisão contra Evo por “sedição, terrorismo e financiamento do terrorismo”. Essa e outras evidências – como o posterior questionamento de pesquisadores renomados de que o relatório da OEA que apontou fraudes nas eleições bolivianas não tinha embasamento técnico – levaram outros países e organizações de Direitos Humanos como a Human Rights Watch a sugerirem que o ex-presidente Evo Morales e seus apoiadores haviam sido vítimas de perseguição política. 

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O impacto da vitória de Luis Arce no Brasil

Em análise no jornal O Globo, a jornalista Janaína Figueiredo afirmou que a vitória de Luis Arce na eleição boliviana “foi uma surra na diplomacia ideológica do governo Jair Bolsonaro”. O governo brasileiro, vale lembrar, foi um dos primeiros a reconhecer a legitimidade de Jeanine Añez depois da queda de Evo Morales. 

A tendência, no entanto, é que Brasil e o novo governo boliviano mantenham relações diplomáticas, como afinal de contas vinha acontecendo mesmo quando Evo estava no poder. O ex-presidente boliviano chegou a assistir à posse de Bolsonaro e afirmou, à época, que os dois países têm raízes profundas. 

O economista Roberto Laserna, ex-professor da Universidade de Princeton (EUA) e da Universidade Mayor de San Simón (Bolívia), afirmou em entrevista à BBC no ano passado que a cautela da Bolívia em relação a Bolsonaro se devia especialmente ao fato de sermos um dos maiores importadores de gás boliviano, além de os países enfrentarem questões em comum como o combate ao tráfico na fronteira. 

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Ainda assim, do ponto de vista geopolítico, para governo Bolsonaro, “o Brasil perdeu de lavada” com a vitória de Arce, como afirma Figueiredo, e se vê cada vez mais cercado por vizinhos governados pela esquerda, como Argentina, Venezuela e agora, mais uma vez, a Bolívia.

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