Haiti: uma história de insurreições e desastres
País do oeste caribenho tem história marcada por levantes políticos e cerceamentos nacionais e internacionais
Em agosto, em um curto espaço de quatro dias, duas novas tragédias abateram o Haiti: um terremoto de 7,2 graus seguido por um ciclone. O saldo é a destruição de cidades inteiras em um país de poucos recursos. Até o momento da publicação deste texto eram cerca de 2 de mil mortes, mais de 6 mil feridos e um incontável número de desabrigados.
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O Haiti é o país mais pobre das Américas e do Caribe. A sua renda per capita é pouco maior de US$ 1 mil, menos de 10% da brasileira. Além de ser o país mais pobre da região, o Haiti é também o mais desigual: os 20% mais ricos detém 64% da renda nacional enquanto os 20% mais pobres apenas 2%. O país viveu uma recessão de 1,9%, em 2019. Já em 2020, a recessão foi de 3,8% em decorrência da pandemia de Covid-19, segundo dados do Banco Mundial.
Apesar de ser lembrado por seus conflitos políticos, tragédias ambientais, epidemias como a de cólera e problemas sociais, o Haiti tem uma das mais emblemáticas histórias da América Latina. A seguir, veja os principais pontos marcantes da trajetória do país.
Saint-domingue (São Domingos) do açúcar
Inicialmente uma próspera colônia francesa, chamada de São Domingos, o Haiti fornecia açúcar de forma mais competitiva do que Cuba e o nordeste brasileiro. O produto era valiosíssimo no comércio internacional no século 18.
Segundo o historiador da USP, Fabio Luís Barbosa dos Santos, no século 19 cerca de dois terços da população de São Domingos era constituída de escravos de origem africana. A taxa de mortalidade era alta em decorrência da falta de cuidados médicos, alimentação, abrigo adequado e pelo excesso de trabalho. Foi então que a população negra começou a ser influenciada pela revolução que estava acontecendo na metrópole francesa.
A Revolução Francesa (1789 – 1799) foi um movimento social e político que retirou o absolutismo na França e disseminou ideais liberais em várias partes do mundo. Em 1789, os franceses publicaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que declarava que todos os homens eram livres e iguais.
No entanto, as novas leis francesas ainda não eram válidas para a colônia de São Domingos.
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Revolução Haitiana (1791–1804)
A Revolução Haitiana foi um período de conflitos na colônia de São Domingos por independência e o fim da escravidão. A revolta foi motivada pela exploração e violência do sistema colonial escravista francês.
O líder militar da revolução foi François Toussaint Breda, neto de um chefe africano. Mais tarde, ele adotou o nome de Toussaint L’Ouverture. Apoiados por tropas espanholas e britânicas, os escravos de São Domingos se converteram em soldados. Em 22 de agosto de 1791, teve início uma guerra civil.
Em 1793 é proclamado o fim da escravidão. Sem condições de vencer a guerra, a França decide abolir formalmente a escravidão na colônia em 1794. Em 1801, a França chega a mandar uma expedição sob o comando de Napoleão Bonaparte para tentar reverter a situação.
Em 1° de janeiro de 1804, o líder Jean-Jacques Dessalines declara São Domingos independente. Pouco depois, em 14 de agosto de 1804, Saint-Domingue muda o seu nome para Haiti. O país tornou-se a primeira república governada por pessoas de ascendência africana.
O país, que já havia sido o primeiro nas Américas a abolir a escravidão, tornou-se, assim, o primeiro a tornar-se independente na América Latina e Caribe. O levante da pequena república assustou governantes nos Estados Unidos e no Brasil, países cujas economias, em diferentes graus, dependiam da escravidão.
A independência teve seu preço, que está na raiz dos problemas haitianos. A França, em troca da independência, cobrou uma indenização equivalente ao seu orçamento anual. Os Estados Unidos e o Vaticano apoiaram sanções ao país – algo semelhante ao que se faz com Cuba hoje (sem o apoio do Vaticano e da maior parte dos países-membros da ONU).
Ocupação dos EUA
No século 20, entre 1915 e 1934, o Haiti foi ocupado pelos Estados Unidos – que exercia influência ainda maior nos países caribenhos. Foram os americanos que instituíram o francês como idioma oficial no lugar da língua dos negros, o criollo – e governaram apoiados em uma minoria mulata, colocando os cidadãos negros em segundo plano. O país também interviu em diversos setores, como a polícia, fortalecendo a repressão. Estima-se que 15 mil haitianos tenham sido mortos em ações policiais no período. É bom lembrar que os Estados Unidos e a França foram aliados na perseguição ao país no século 19 e o idioma francês, assim, foi o meio de separar os cidadãos e reprimir a cultura de matriz africana.
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Ditadura
Em 1957, tem início uma nova fase do país com a eleição do médico François Duvalier, o Papa Doc. O governo logo converteu-se em um regime ditatorial de caráter totalitário, que se valeu do orgulho negro para legitimar seu poder, fortalecido pelo apoio dos Estados Unidos, receoso da influência cubana na região após a Revolução de 1959.
Com a morte de Papa Doc, em 1971, ascende seu filho de 19 anos, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. Seu governo, que deu continuidade à ditadura, abriu espaço para as chamadas “maquiladoras”, ou seja, indústrias montadoras. Derrubado em 1986, exilou-se na França, num levante democrático e popular.
Após um período de transição, o ex-padre Jean-Bertrand Aristide, figura popular do campo da esquerda, é eleito em 1990 e derrubado meses depois. Volta ao poder em 1994, com apoio internacional, e fez seu sucessor, René Preval. Voltaria ao poder em 2000, mas renunciaria em 2004, ante os conflitos populares.
Missão da ONU
A renúncia colocou o país à beira da guerra civil e levou a ONU a criar a chamada Minustha, uma missão de intervenção humanitária, cuja liderança foi assumida pelo Brasil. À época comandado por Luiz Inácio Lula da Silva, o governo brasileiro buscava maior inserção e influência no mundo.
A intervenção contou com mais de 36 mil militares, entre eles o ex-secretário de Governo de Bolsonaro, o general Santos Cruz, e o atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno.
A missão deveria durar meses, mas estendeu-se até 2017. Em 2020, a capital Porto Príncipe foi palco do “Tribunal Popular Contra os Crimes da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah)”, que denunciou crimes como a repressão militar, instituições de milícias, o tráfico de mulheres para fins sexuais e outros crimes sexuais. A missão para boa parte da população haitiana aumentou a instabilidade política do país, que segue muito influenciado pelos Estados Unidos.
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Instabilidade
Jovenal Moïses, eleito presidente em 2016 e referendado em 2017, foi torturado e morto em 7 de julho de 2021 em sua casa em Porto Príncipe. Seu governo foi marcado por crise econômica, protestos por sua renúncia e pelo endurecimento do regime, com a dissolução do Parlamento e a concentração do poder em suas mãos.
As investigações apontam para um crime que envolve cidadãos de vários países, como os Estados Unidos, o Equador, a Colômbia e a Venezuela. O país é governado desde 20 de julho por Ariel Henry, escolhido indiretamente como primeiro-ministro. O novo governante disse que o momento era de “união e estabilidade”, frente o acirramento dos conflitos civis.
Fontes
Pulso Latino: Série Caminhos Latinos, Haiti (episódio 12)
Brasil, uma biografia (Companhia das Letras), Lilia Schwarcz e Heloisa Starling