Uma das discussões mais recentes – e polêmicas – sobre a Língua Portuguesa é a utilização das vogais temáticas. A proposta de uma terceira forma que vá além do A para o gênero feminino e do O para o gênero masculino é conhecida como Linguagem Neutra e compreende, basicamente, a utilização de uma terceira letra para se referir a todos, sem particularizar gênero, inclusive para aqueles que não se identificam com a binariedade – ou seja, não se sentem confortáveis em se associar nem ao feminino, nem ao masculino.
A proposta de criação de pronomes que sejam “neutros” tem movimentado discussões na república das Letras por bater de frente com uma polêmica questão: a Língua Portuguesa já não é neutra? Entre os professores, gramáticos e estudantes da língua que debatem o assunto, há aqueles que defendem que, sim, a variedade masculina dos pronomes (Ele, Eles) e dos artigos (o, os) já compreende a neutralidade, ao passo que são utilizados quando se tem, em um mesmo grupo, homens e mulheres. No exemplo “eles vão ao parque juntos”, o “eles” pode ser tanto para dois indivíduos do gênero masculino quanto para um indivíduo do gênero masculino e um do feminino.
A gramática conservadora, conhecida como a norma culta da língua, entende que não é necessário distinguir os gêneros de determinado grupo quando há a presença de homens e mulheres. Utilizar, portanto, “Os alunos e as alunas foram ao parque” seria um pleonasmo. Isto é, ao utilizar o gênero masculino em “alunos”, já está implícita a possibilidade de terem somente estudantes do sexo masculino, quanto a de terem meninos e meninas. Qual seria, então, a necessidade de criar uma terceira classificação de pronomes?
O que é e como surge o pronome neutro?
Nos estudos das línguas, a Linguística é a área em que se reconhece o lado “vivo” de qualquer língua, tendo em vista que ela está em constante transformação e evolução. “Ao contrário da gramática tradicional, a chamada norma culta, a linguística acredita que a língua é viva e sempre disposta a alterações. A gramática é conservadora, não em uma questão moralista, mas no sentido de ser menos suscetível a mudanças”, o professor Thiago Mio Salla, da Universidade de São Paulo.
Um exemplo seria a mudança do Latim formal para o Latim vulgar que, séculos depois, originaria um grupo de línguas entre as quais o português. Historicamente, a flexão de vogais para diferenciar palavras masculinas de palavras femininas vem das raízes românicas. E havia – surpresa! – uma terceira opção além do masculino e feminino, mas que caiu em desuso durante as adaptações da língua. A inserção de uma letra para caracterizar neutralidade, seria inicialmente, um estudo do campo linguístico para, só depois, ser integrado à gramática.
De acordo com Salla, a falta de aceitação do novo Acordo Ortográfico, proposto em 2009, e que muda apenas 2% de palavras na língua, já prova quão difícil é fazer mudanças ortográficas na língua. “Seria necessário primeiramente uma mudança no pensamento social para, só depois, a adaptação da língua. Entretanto, o caminho inverso também é valido, e por isso ainda é tão incerto falar desse tópico”, explica.
Fato é que, apesar de constantes discussões e polêmicas, é crescente a camada da sociedade que reconhece a existência de indivíduos que não se identificam com o gênero masculino ou feminino. A chamada comunidade não-binárias inclui todos aqueles que não se enquadram em um dos dois gêneros pré-definidos. O gênero não deve ser confundido com sexualidade, e muito menos com a genitália de cada um: é muito mais sobre a forma como o indivíduo se enxerga no mundo e como se porta e deseja ser tratado. Alguns não-binários, inclusive, comparam a não-binariedade à escala de cores: na mesma lógica de que de uma cor para outra há uma infinidade de tons, do gênero masculino ao feminino, também.
A YouTuber Cup, uma jovem não-binária de 22 anos, explica que algumas pessoas podem se sentir confortáveis sendo tratadas tanto no masculino como no feminino, mas, para outras, esses termos podem ser opressores, pois as empurram para um contexto em que elas não se sentem representadas. “Há de existir uma forma de respeitar suas identidades na língua da mesma forma que respeitamos homens e mulheres”, diz.
Não há um registro exato para o início das discussões sobre Linguagem Neutra. Mas as redes sociais têm a ver com sua popularidade, já que deram aos jovens da comunidade LGBTQ+ meios para se expressar e se identificar com outros semelhantes. Se engana quem pensa, porém, que a ideia é aceita igualmente pela comunidade.
A atriz e escritora Estrela Rofe diz que um indivíduo transexual quer ser tratado pelo gênero com o qual se identifica e a ideia de um terceiro pronome e artigo seria, na verdade, um ato de exclusão e não inclusão. “[Essa mudança] representa uma porcentagem de indivíduos que não chega nem a 15% da comunidade LGBT, e também não chega a 00,2% da porcentagem de brasileiros”, conta Estrela. “São em sua maioria adolescente ou jovens com menos de 35 anos que absorveram teorias estadunidenses para tentar se conectar a uma realidade.”
O que propõe a Linguagem Neutra?
Na prática, a proposta é usar E como desinência nominal para as palavras que admitem flexão de gênero. Um exemplo, neste caso, seria: “Ariel é muito esperte”. O pronome possessivo que no masculino seria meu e no feminino seria minha, no neutro seria minhe: Ariel é minhe amigue. Para os pronomes pessoais de terceira pessoa, no qual o masculino é ele e o feminino é ela, a opção neutra mais reconhecida é o elu.
“Elus gostam de estudar”, explica a youtuber Cup. “O artigo mais reconhecido seria o Ê (o uso do acento circunflexo é importante para se criar uma diferenciação da conjunção aditiva e, assim como ressaltar a forma adequada da pronúncia, para também não haver confusão): “Ê estudante tem sido bem disciplinade nas aulas”.
Mas, para haver a mudança, é preciso um acordo entre os usuários da língua. “Falta ainda um consenso entre os adeptos dos pronomes neutros. Apenas recentemente foi entendido que usar o @ ou o X no lugar do marcador de gênero pode causar dificuldades nos sistemas de leitura para deficientes visuais e auditivos”, diz o professor Tiago Salla. Antes disso, a utilização da letra U também foi proposta e é usada ainda hoje por alguns adeptos.
A Língua Portuguesa é machista?
Um dos principais pontos envolvidos na discussão é o uso linguístico do masculino genérico para expressar um gênero não marcado, ou seja, neutro, que inclui tanto homens quanto mulheres. Os falantes de português, por exemplo, ao ouvirem ou lerem uma frase no gênero masculino sabem que todos os indivíduos estão contemplados (Ex: “Os professores estão ocupados” ou “O homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”).
Quando a língua portuguesa derivou do latim, que previa três definições de gênero: masculino, feminino e neutro, houve uma fusão entre masculino e neutro por causa de algumas semelhanças de estruturas morfossintáticas. Portanto, a única marcação de gênero existente, de fato, é o feminino.
Alguns especialistas defendem, porém, que o uso do masculino genérico, também conhecido como “falso neutro“, é uma forma de reforçar as estruturas patriarcais estabelecidas na sociedade, que coloca sempre o homem acima da mulher. Não é à toa que médico é tratado no masculino, quando se quer um efeito genérico. E empregada, no feminino. O gênero da maioria dos ocupantes dos cargos pode acabar fazendo a regra e, indiretamente, limitando ambições ou reforçando estereótipos.
Mas esse ponto de vista não é unânime nos estudos linguísticos. De acordo com Vivian Cintra, mestre em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), o idioma não é machista, a conduta deve ser atribuída a indivíduos que negam à mulher os direitos já garantidos aos homens. “A língua simplesmente expressa comportamentos manifestados por pessoas que são preconceituosas. Então, quando o uso de uma palavra é considerado machista, isso revela algo sobre quem fez esse uso, e não necessariamente sobre a palavra em si”.
A linguagem como um espelho da sociedade
Há exemplos de muitas palavras que nasceram e se transformaram ao longo da história. Esse processo acontece naturalmente porque a língua acompanha os avanços socioculturais de determinada época. Ninguém mais ouve “vosmecê” em uma conversa, exceto em novelas, filmes e séries de época. O uso do “você” já é consolidado no português brasileiro, mas nada impede que daqui alguns anos isso mude.
“Importante ressaltar que nem toda mudança é igualmente transformadora: alterações ortográficas, por exemplo, são comuns e interferem pouco ou quase nada no uso das palavras. Mas toda língua apresenta ‘variação’ que é sempre uma provocadora em potencial de mudanças”, afirma Cintra.
Atualmente, a luta por igualdade de direitos civis de mulheres, pessoas da comunidade LGBTQIA+, do movimento negro, entre outros grupos, e o reconhecimento de fatos históricos como o Holocausto e a escravidão, contribuem para ressaltar a função social da linguagem. Termos como “judiar”, “criado-mudo”, “denegrir”, “traveco”, eram bem aceitos pelos falantes até pouco tempo atrás. Essa mesma transformação pode ocorrer com a linguagem neutra.
Outros países também estão discutindo o tema. Nos EUA, a Universidade de Minnesota adota políticas de identidade gênero que reconhecem os pronomes escolhidos pelos estudantes. Em Portugal, no dia 18 de setembro, o Ministério da Defesa elaborou um conjunto de instruções que recomenda o uso da linguagem neutra e inclusiva na confecção de certidões e registros civis. Cintra explica que dar visibilidade a pessoas à margem da sociedade, historicamente apagadas, nos obriga a encontrar novas formas de incluí-las no discurso.
“A melhor forma de introduzir uma linguagem mais neutra é, antes de tudo, repensar o que estamos ensinando e que visões de mundo são perpetuadas. Se essa reflexão for feita para definir o conteúdo que ensinamos, a forma como nos expressamos tende a ser uma decorrência diretamente ligada a isso”, comenta Cintra.
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