A segunda onda da pandemia já é um fato e colocou diversos países do mundo em alerta. Reino Unido, França e Portugal são alguns dos que haviam relaxado as medidas de prevenção, reabrindo comércio e escolas, após a primeira onda de contaminação e que agora preparam-se para o retorno ao confinamento. Ou, como a medida ficou mais conhecida, para o lockdown.
Assim como tudo nesta pandemia, o lockdown está longe de ser uma medida exata, universal e inquestionável. Enquanto estima-se que, na Europa, ele tenha evitado mais de três milhões de mortes, sua implementação no Peru não impediu que o país ocupasse o terceiro lugar no mundo em número de mortes por habitantes pela covid-19. No Brasil, o lockdown não foi aplicado a nível nacional, mas estados como Maranhão, Pará e Ceará chegaram a implementá-lo em algumas cidades ainda em meados de maio.
Agora, com o aumento de internações em algumas regiões do país e com o alerta de superlotação de hospitais (que já não têm a mesma capacidade de mobilização do começo da pandemia), o lockdown voltou com força ao debate público, de pronunciamentos de prefeitos a hashtags no Twitter. Entenda, afinal de contas, quais os argumentos a favor e contra a medida e quais resultados ela trouxe a alguns países.
Cada caso, um caso
“Estamos em período eleitoral e talvez por isso não haja interesse político em novo lockdown agora, mas é uma medida extremamente necessária! Por favor, ajude a controlar a pandemia e se proteja!”. Foi assim que um grupo de médicos infectologistas do estado de São Paulo, da linha de frente de combate à pandemia, defendeu, em uma carta a amigos, a adoção do isolamento radical para conter o aumento de casos da doença. A carta foi divulgada na semana passada pela Folha de S. Paulo.
Assim como eles, especialistas em infectologia e estudiosos do mundo todo viram no lockdown e em medidas rígidas de isolamento social uma alternativa para frear o aumento de casos. Um estudo do Imperial College de Londres estimou qual teria sido a taxa reprodutiva da infecção – ou seja, o número médio de contaminados por uma pessoa doente – caso o lockdown não tivesse sido decretado em alguns países europeus, e concluiu que mais de 3 milhões de vidas foram poupadas. Já uma pesquisa da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, estimou que 530 milhões de pessoas deixaram de se contaminar até o início de abril em função das medidas de confinamento impostas na China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Irã e Itália.
Mas, é claro, o lockdown não responde, sozinho, pelo controle da pandemia. Mesmo os estudos que indicam a eficácia da medida sofrem com variáveis, já que o confinamento não foi aplicado da mesma forma e pelo mesmo período em todos os países. E nem poderia. Basta tomar como exemplo o Peru. Logo em março, o então presidente Martín Vizcarra decretou o fechamento de fronteiras e impôs toque de recolher em todo o país, além de ordenar o fechamento de todo o comércio não essencial. As condições socioeconômicas da população peruana, no entanto, não permitiram o isolamento desejado.
Alguns dados levantados pela BBC ajudam a explicar. Cerca de 70% da população peruana trabalham em postos informais, como a venda de produtos em feiras abertas, e não deixaram suas atividades profissionais de lado durante a pandemia. Mais de 40% dos peruanos não têm geladeira em casa, e as idas mais frequentes ao supermercado, aliadas à lotação por causa dos horários restritos de funcionamento, resultaram na contaminação em massa de funcionários dos mercados do país. As aglomerações repetiram-se nas filas dos bancos e dentro das próprias residências, já que 11,8% das famílias pobres no Peru vivem em casas superlotadas, de acordo com a Pesquisa Nacional de Famílias.
Somado a tudo isso, o Peru também não foi o país mais eficiente em testar e tratar os casos de covid-19. A média foi de seis testagens a cada mil pessoas – bem atrás da Itália, por exemplo, que realizou 80 testes para cada mil habitantes. E essas medidas de rastreio e testagem, por sua vez, são as que deveriam nortear o combate à pandemia. Antes mesmo do lockdown.
Quem explicou foi o cientista Átila Iamarino. Em uma série de tuítes, ele opinou sobre declarações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que no mês passado afirmou reiteradas vezes que o lockdown não deveria ser a medida número um de combate à pandemia. Átila retomou o exemplo de países como Vietnã, Coreia do Sul e outros que conseguiram controlar a primeira onda de casos apenas com rastreio, teste, isolamento e poucos períodos curtos de lockdown. O que não invalida, é claro, a eficácia da medida, mas a relativiza. Segundo o cientista, o lockdown serve como “um recurso estratégico e pontual”.
Ninguém falou: só lockdown salva. Os melhores exemplos que temos (Vietnã, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Alemanha, Senegal, etc.) são países que, se muito, contaram com lockdown pontual, pra resolver uma região ou um período. Por longo prazo, só rastreio, teste e isolamento.
— Atila Iamarino (@oatila) October 13, 2020
Uma questão de economia?
Não foi apenas a declaração de que o lockdown não é a recomendação número um da organização que tornou tão popular a declaração do emissário da OMS David Nabarro. Na entrevista que deu origem à polêmica, o médico e diplomata discorreu sobre os prejuízos desencadeados por medidas severas como o lockdown, justificando que elas ressaltam ainda mais a desigualdade e colocam em risco a economia.
Os prejuízos econômicos são os mais evocados para argumentar contra o isolamento social, mas um relatório recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) lançou nova luz sobre o assunto. No documento, divulgado em outubro, economistas do FMI analisam que, apesar de ter impacto negativo na economia no curto prazo e contribuir para a recessão, o lockdown tem uma outra face positiva. Por reduzir as taxas de infecção, a medida permite, em um segundo momento, uma recuperação econômica mais rápida. O relatório afirma que a disseminação descontrolada do vírus, por outro lado, gera “consequências econômicas desastrosas”.
“Apesar de envolver custos econômicos de curto prazo, medidas de lockdown podem abrir caminho para uma recuperação mais rápida ao conter a propagação do vírus e, com o tempo, reduzir a necessidade de distanciamento social voluntário, possivelmente com efeitos gerais positivos na economia”, apontou o texto, esclarecendo, no entanto, que os prejuízos econômicos devem perdurar enquanto ainda houver riscos à saúde.