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Mais trabalho, pouco recurso: desafios da ciência brasileira na pandemia

Em momento de visibilidade, pesquisadores brasileiros acumulam vitórias e muitos desafios

Por Juliana Morales
Atualizado em 17 mar 2021, 09h56 - Publicado em 27 nov 2020, 18h23

Em meio à pandemia, a grande expectativa por uma vacina contra a covid-19 tem aberto à ciência um espaço importante de visibilidade. A corrida que pesquisadores travam contra o tempo para vencer o vírus que já tirou a vida de milhões deixa evidente que ciência se faz em equipe, precisa de constância, e depende de recursos.

O Brasil está no grupo dos países que mais publicaram estudos sobre o coronavírus desde o início da pandemia. Das 168.546 publicações científicas relacionadas à doença, realizadas até outubro, no mundo todo, 4.029 são assinadas por pesquisadores que trabalham no país. Esse número deixa a produção brasileira na 11.ª posição no ranking mundial, superando o que foi produzido por países como Holanda e Japão.

Apesar do potencial do Brasil nessa área da ciência, por sua experiência com outras graves epidemias como Zika vírus, não foi realizada uma estratégia nacional coordenada de investimento em pesquisa e desenvolvimento para a crise gerada pelo coronavírus.

De acordo com nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, publicada em maio deste ano, o governo federal previu investimentos de 466,5 milhões de reais para pesquisa e desenvolvimento relacionados ao enfrentamento da doença, mas publicou apenas dois editais no valor de 60 milhões de reais, com resultados previstos para junho – um número muito baixo que dificulta a saída da crise.

A comparação de investimentos é discrepante com países como os Estados Unidos que alocou mais 6 bilhões de dólares exclusivamente para pesquisas sobre a covid-19, ou o Canadá ampliou em cerca de 12% os investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento. 

Segundo Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), isso explica o porquê há o avanço nas pesquisas dentro do território brasileiro nos últimos anos – o que já é muito importante, sim -, mas o reflexo da inovação no país ainda é pequeno.

Em outras palavras, a maior dificuldade, com poucos recursos, é transformar a produção científica em produto tecnológico, refletindo na melhoria da condição de vida das pessoas. Assim, muitas vezes, há ótimas descobertas, mas que não tem investimentos suficientes para serem desenvolvidas.

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Aspectos do problema

Ildeu aponta que uma das principais razões do problema é a ausência de política pública adequada para estimular as empresas a investirem na ciência também, além dos recursos públicos.

O especialista defende a necessidade de uma mudança de mentalidade do empresarial nacional, que precisa perceber a importância da pesquisa e desenvolvimento. “O Brasil tem muito a mentalidade de exploração das riquezas, como o café e a Amazônia, mas sem um desenvolvimento sustentável e escorado em inovação”, afirma.

Outra grande amarra para o progresso da ciência e tecnologia brasileira é a burocracia excessiva. Os muitos trâmites administrativos atrapalham a aquisição de equipamentos e materiais, atrasando o desenvolvimento, por exemplo. Segundo professores e pesquisadores ouvidos pela reportagem da Gazeta do Povo, a burocracia nas universidades públicas brasileiras tem sido um grande obstáculo e “uma das causas que leva o país às piores posições nos rankings de relevância científica”.

Apesar disso, há muito avanço científico na pandemia

Sem os recursos necessários, além da desvalorização dos pesquisadores, a sociedade também perde, já que a ciência pode ajudá-las e muito. Prova disso é o capacete Elmo, desenvolvido no Ceará. O nome faz alusão ao capacete que garantia a proteção dos guerreiros medievais. Mas dessa vez, é uma ferramenta de muita ajuda na batalha contra a covid-19.

Com o uso de um mecanismo de respiração artificial não invasivo, o equipamento, de acordo com os testes clínicos realizados, ajuda a evitar a intubação de pacientes, reduzindo em 60% a necessidade de internações em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

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O projeto foi desenvolvido pelo Governo do Ceará, por meio da Sesa, ESP/CE e Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/Ceará), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade de Fortaleza (Unifor), com o apoio do Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar (ISGH) e Esmaltec. Já aprovado pela Anvisa, o capacete já tem o aval para ser fabricado e comercializado em escala industrial.

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Além de ajudar os pacientes de covid-19, como um legado da pandemia, o equipamento pode tratar outras enfermidades que comprometem o funcionamento dos pulmões, como pneumonia e H1N1. 

Mais desafios pela frente

As pesquisas sobre o novo coronavírus vão continuar por muito tempo, assim como a batalha da comunidade científica contra os cortes e a redução de recursos. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou uma carta em defesa da ciência, educação e desenvolvimento sustentável para o século XXI.

O documento trouxe números e dados preocupantes: pela proposta orçamentária de 2021, elaborada pelo governo federal e em análise no Congresso Nacional, o Ministério da Ciência e Tecnologia terá para investimento R$ 2,7 bilhões. Isso representa uma queda de 34% em comparação a 2020, no qual o valor reservado no Orçamento federal é de R$ 3,7 bilhões. O valor atual já muito mais baixo de 2019, que contou R$ 5,7 bilhões para a área.

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Cortes e perdas de recursos como essas possíveis impactam instituições de referência na esfera federal, como a Fundação Oswaldo Cruz, vinculada ao Ministério da Saúde. Vale ressaltar que a Fiocruz, tão atuante na pandemia, é responsável pela possível produção da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pelo laboratório AstraZeneca.

Para Ideu, presidente da SBPC, isso se dá por conta do que ele chama de “terraplanismo econômico”: sem considerar a importância (inclusive, econômica) da ciência, os gestores, olhando apenas os números, reduzem os recursos como a melhor saída para resolver a questão.

A sociedade como aliada da ciência

Na luta pela valorização da ciência e tecnologia, a pesquisadora e médica veterinária Gabriela Ramos Leal ressalta a importância da comunicação e aproximação entre a comunidade científica e a sociedade.

Para ela, além de ajudar no combate à fake news, é papel do pesquisador comunicar melhor e aproximar das pessoas esse mundo complexo dos laboratórios para ajudar a reduzir o movimento atual forte de negacionismo da ciência. “Nossas descobertas são para construir um mundo melhor. A sociedade paga a pesquisa e ela precisa ver como ela retorna, na prática, na sua vida”, afirma a mestre e doutora em Clínica e Reprodução Animal. 

Foi com esse pensamento, inclusive, que Gabriela se consagrou a vencedora da competição de comunicação científica FameLab Brasil. No concurso, ela buscou mostrar um lado da medicina veterinária que não é conhecido pela sociedade, traduzindo de uma forma mais simples o que está sendo realizado nos laboratórios e centro de pesquisas.

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Em uma das etapas, ela trouxe um conceito científico de muita relevância para a atualidade e pouco falado: o desenvolvimento de soro para tratar a Covid-19 a partir de testes em cavalos.

Gabriela foi a primeira mulher e negra a vencer o concurso. Ela acredita que a forma como um jovem pesquisador é encarado pela sociedade precisa mudar: “não é só uma pessoa que vive estudando, mestrandos e doutorandos são aqueles que destinam seu tempo para pesquisar melhorias nas diversas áreas. Além disso, a pesquisa é de todos: brancos, negros, homens, mulheres, pessoas LGBT e com deficiência. 

Pensando no lado positivo, o contexto da pandemia favorece essa aproximação e mudanças nas relações com a ciência, que a veterinária defende, pela visibilidade do momento. De acordo com a terceira edição do Índice Anual do Estado da Ciência (State of Science Index – SOSI), pesquisa global conduzida pela empresa de ciência e inovação 3M Company, revela que a confiança dos brasileiros aumentou durante a pandemia.

No levantamento, 89% disseram acreditar que a atividade científica precisa de mais financiamento e 88% concordam que a ciência tornará suas vidas melhores nos próximos 10 anos.

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Ildeu, à frente da SBPC, diz aos jovens que gostam e sonham em fazer ciência que não desistam. Por sua vez, as autoridades brasileiras, com o apoio da sociedade, precisam criar políticas públicas de valorização para evitar a perda de grandes talentos – como a Gabriela – por falta de incentivo . “Precisamos atuar coletivamente com a perspectiva de um projeto de país diferente”.

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