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Milícias: sua origem e ascensão como poder paralelo no Brasil

Esquadrões da morte utilizam a violência armada para controlar regiões e disputar território com facções criminosas

Por Wender Starlles
4 nov 2020, 06h23

Os primeiros grupos de milícias formados por policiais militares e outros agentes de segurança pública que se têm registro no Brasil, foram criados durante a ditadura militar (1964-1985). Eles tinham como justificativa o combate ao avanço do crime organizado e do tráfico de drogas nas grandes metrópoles. A história de como essas organizações surgiram e se tornaram uma força que domina o Rio de Janeiro é contada no livro República das Milícias: Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonarista, de Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Na época, os núcleos urbanos, em expansão acelerada e crescente desigualdade social, começavam a enfrentar uma série de problemas relacionados à violência.

As milícias se fortaleceram aos poucos e, em 1993, um crime que ganhou repercussão internacional explicitou o problema. Naquele ano, oito jovens foram assassinados por policiais enquanto dormiam do lado de fora de uma igreja no centro do Rio. Foi a chacina da Candelária.

Ao longo de décadas, vários estados presenciaram o surgimento desses esquadrões da morte, que passaram a disputar entre si o controle territorial de regiões onde o Estado não conseguia garantir a segurança da população, nem exercer o monopólio da força. Porém, foi no Rio de Janeiro da década de 2000 que as milícias ganharam expressividade e se tornam um poder paralelo.

De acordo com Manso, isso ocorreu porque os grupos paramilitares desenvolveram uma estrutura econômica muito consolidada. “Eles passaram a extrair receitas de taxas de segurança a extorsão de comerciantes. Também cuidavam da construção e venda de imóveis em áreas ilegais. Além disso, tinham o monopólio de serviços essenciais como água, energia, internet e gás”.

No início, a entrada das milícias espantava os traficantes, que costumavam fazer verdadeiras guerras pelo controle de pontos de venda de droga. Esse fator, aliado à diversidade de negócios da milícia, atraiu mais moradores para as áreas controladas com o uso da força armada. Atualmente, milicianos organizam inclusive a venda de drogas — prática que antes era proibida, restrita apenas às facções criminosas.

Uma pesquisa recém-divulgada revela que a milícia e o tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da capital carioca. Os dados foram organizados pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), datalab Fogo Cruzado, Núcleo de Estudos da Violência da USP, plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia.

Segundo o levantamento, batizado de Mapa dos grupos Armados do Rio de Janeiro, até o fim de 2019, grupos paramilitares controlavam 58,6% do território da cidade. Aproximadamente 2,2 milhões de pessoas vivem nesses locais subjugados. Em alguns casos, as milícias recebem o apoio de moradores por garantirem uma suposta sensação de segurança.

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Mapa mostra o territórios controlado pelas milícias
(Foto: Disque-Denúncia (Elaboração Fogo Cruzado, GENI-UFF, NEV-USP, Pista News)/Reprodução)

Acordo com as facções

Desde a criação, esses grupos paramilitares alegavam, de maneira homogênea, serem uma força de oposição ao crime organizado. Mas o cenário mudou depois do trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), em 2008, que acabou levando à prisão de 246 milicianos, entre eles, diversas lideranças. Cargos importantes que ficaram vazios dentro das milícias começaram a ser assumidos por nomes vindos do tráfico de drogas, o que contribuiu na construção de relações comerciais um pouco mais estreitas entre essas forças até então inimigas.

Relação das milícias com a política

Um dos fatores determinantes que diferenciam as milícias das facções criminosas comuns e que dificultam o seu combate é o apoio que elas recebem de setores da política. “O grupo mais perigoso, principalmente para a nossa democracia e para as instituições, são os paramilitares. Eles têm capacidade de infiltração nos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) muito maior do qualquer outra facção”, afirma Manso.

Essa inserção é tão grande que, há anos, diversos deputados eleitos no Rio de Janeiro empregam em cargos públicos, dentro dos gabinetes, milicianos e seus familiares. O caso mais famoso é do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), que homenageou em 2005, quando era deputado, o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e chefe de uma das milícias mais violentas do estado, Adriano Magalhães da Nóbrega.

O ex-policial foi citado na investigação que apura o esquema de “rachadinha” no gabinete de Flávio e ficou foragido até ser morto em confronto com policiais em uma ação na Bahia no início deste ano.

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Apesar de usarem métodos semelhantes aos das facções, as milícias recebem apoio de parlamentares sob o discurso de que o uso da violência contra o crime representa a ordem. Isso justificaria execuções, por exemplo. Para Manso a benevolência com que as autoridades enxergam esses grupos é um grande problema. “Imagina algum político fazer um discurso defendendo um traficante, que são considerados os grandes inimigos das cidades porque causam desordem. A atitude seria mal vista pela sociedade. No caso das milícias, isso não acontece”, diz.

Eleições

De acordo com relatório do Disque-Denúncia, as milícias e o tráfico já influenciam a campanha eleitoral em 14 cidades do Rio, ameaçando as eleições deste ano. Há relatos, por exemplo, de desvios de materiais de candidatos adversários para garantir mais votos ligados a nomes ligados essas organizações. Alguns casos chegam à morte.

O vereador Zico Bacana, que busca a reeleição, foi baleado de raspão após um evento de campanha. Ele é apontado como líder da milícia de Guadalupe, na zona norte do Rio. Dois candidatos a vereador de Nova Iguaçu foram assassinados a tiros em crimes supostamente ligados à milícia.

“O voto é secreto, mas as milícias intimidam o surgimento de oposição ou de discursos alternativos. Para sair como candidato nos territórios dominados e preservar sua vida, você não pode prometer que vai acabar com a tirania deles”, afirma Manso.

Conhecida por suas críticas ao domínio das milícias nas comunidades cariocas, a vereadora do Rio Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram executados em março de 2018. As investigações, ainda em aberto, apontam para o envolvimento de vários ex-militares milicianos no crime.

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Tropa de Elite

O filme “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é outro” (2010), um dos maiores sucessos do cinema nacional, tornou conhecida a história dos inúmeros desafios enfrentados por Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura, ao tentar acabar com o poder de milicianos e políticos corruptos no Rio de Janeiro. Em um dos discursos mais famosos feitos pelo personagem, ele revela a dificuldade de combater a influência desses grupos, que alimentam financeiramente as milícias nos morros:

“O sistema é muito maior do que eu pensava. Não é à toa que os traficantes, os policiais e milicianos matam tanta gente nas favelas. Não é à toa que existem as favelas. Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília. Entra governo, sai governo, e a corrupção continua. Para mudar as coisas, vai demorar muito tempo. O sistema é foda. Ainda vai morrer muito inocente”.

Após conseguir combater com sucesso o tráfico de drogas e transformar o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) em uma instituição reconhecida, Capitão Nascimento percebe que os verdadeiros inimigos estão em outros lugares.

Para saber mais:

Carcereiros, de Drauzio Varella

Meu casaco de general, de Luiz Eduardo Soares

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Rota 66 – A História da Polícia que mata, de Caco Barcellos

A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, de Bruno Paes Manso e Camila Nunes

Cabeça de Porco –  Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde

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