Conhece aquele velho ditado popular de que é melhor ensinar a pescar do que dar o peixe? Ao que tudo indica, talvez ele não passe mesmo de um ditado popular. Uma experiência aplicada em diversos países, estados e cidades do mundo provou o ponto: é preciso que as pessoas tenham recursos mínimos (como o peixe ou qualquer outro alimento) para que, então, consigam reunir forças e condições para ir pescar. Estamos falando de um programa social que já circulou por aí sob o nome de renda mínima, renda básica e que, nos últimos meses, tem dado sinais por aqui na forma do auxílio emergencial e na sugestão, pela equipe econômica, de uma ampliação do Bolsa Família para o programa Renda Brasil.
Embora não seja o melhor contexto de todos, foi a pandemia de Covid-19, afinal, que despertou diversos governantes para a necessidade de uma renda básica, especialmente em contextos de agravamento das desigualdades. Na Espanha, um dos países inicialmente mais afetados pelo coronavírus, a iniciativa foi implementada em junho deste ano com o nome de Renda Mínima Vital, e contemplou cerca de 850 mil famílias. Até mesmo nos Estados Unidos o governo distribuiu 1.200 dólares por família a quase todos seus cidadãos, deixando de fora apenas aqueles que recebem a partir de de 99.000 dólares por ano.
Ainda que tenha ganhado força este ano, o debate sobre renda básica está longe de ser novidade. Até mesmo suas experiências mais antigas, como a do estado norte-americano Alasca, que desde 1982 garante um ganho mínimo para seus mais de 700 mil habitantes, estão muito distantes da gênese da ideia, que data de 1516.
De Thomas More a Milton Friedman
O filósofo e estadista inglês Thomas More não fala precisamente de renda básica no seu Utopia, publicado em 1516, mas a obra é considerada fundadora da ideia pelo trecho em que um personagem defende que o Estado garanta a subsistência de seus cidadãos para que eles não precisem roubar. A ideia foi inspiradora para que outros pensadores depois dele de fato cogitassem modos de implementação da renda básica, agora fora da ficção e não apenas como utopia.
O primeiro deles foi Juan Luis Vives, autor do De Subventione Pauperum (sobre a ajuda aos pobres), que propunha a implementação da renda básica aliada à promoção de empregos e à profissionalização das pessoas necessitadas – primeiro dar o peixe para, então, ter as condições para ensinar a pescar.
Outros autores europeus tornaram-se defensores da renda básica ao longo dos próximos séculos, propondo diferentes abordagens e aplicações da ideia. Entre eles estão o francês Marquês de Condorcet e os ingleses Bertrand Russell e Thomas Paine. Paine, que posteriormente foi um dos fundadores dos Estados Unidos, falava sobre um fundo nacional pago a todos os cidadãos, especialmente aos idosos, para garantir-lhes um fim de vida digno.
Já Russell explorou a ideia de uma pequena renda distribuída indistintamente a todos em seu Caminhos Para a Liberdade: Socialismo, Anarquismo e Sindicalismo. Quem lê o título do livro pode apressar-se em supor que a renda básica é, então, uma ideia própria de um pensamento à esquerda. Mas existe um certo economista nascido no século 20 que também fez coro à ideia, e que está bem longe de qualquer ideal socialista.
Milton Friedman é um dos mais proeminentes nomes da Escola de Chicago (sim, aquela do neoliberalismo) e, apesar de ser um ferrenho defensor dos ideais liberais, propunha a criação pelo governo de um “imposto de renda negativo”, pago pelo governo à parcela mais pobre da população. Na prática, funcionaria como uma renda básica.
Utopia possível: lugares que implementaram a renda básica, como o fizeram e o que mudou
Apesar de os Estados Unidos experimentarem agora, pela primeira vez, uma renda básica emergencial (e temporária) estendida a todo território nacional, foi no estado americano do Alasca a primeira experiência sólida de renda básica, que se estende de 1982 até hoje. Lá, todos os cidadãos, indistintamente, recebem um repasse anual do governo baseado nos valores dos rendimentos dos royalties do petróleo daquele ano. Segundo a BBC, em 2019 foram repassados US$ 1.609 por pessoa.
Em entrevista à Vice em 2015, Scott Santens, um dos grandes defensores da renda mínima, afirmou que “o dividendo do Alasca é a coisa mais próxima de uma renda básica universal que existe em todo o mundo”. Naquele ano, o estado havia registrado a maior renda per capita do país. Além disso, depois da implementação da medida, o Alasca tornou-se o segundo estado menos desigual dos Estados Unidos, atrás apenas de Utah.
Sabe que outro lugar do mundo também conseguiu implementar uma experiência de renda básica a partir de royalties do petróleo? Maricá, uma cidade do Rio de Janeiro! Calma que a informação fica ainda mais surpreendente: o benefício é pago por meio de uma moeda digital local, chamada mumbuca. Além de reduzir os índices de desigualdade e garantir acesso a direitos básicos, a distribuição da mumbuca permitiu o incentivo ao comércio local e aumentou a arrecadação municipal, já que circula apenas dentro da cidade.
Mas nem tudo, é claro, são flores. Para as várias experiências bem-sucedidas de renda básica, existem algumas que não funcionaram tão bem assim, seja pela dificuldade de implantação ou pela constatação de que não geram o “retorno esperado”, como o reingresso das pessoas no mercado de trabalho. No Irã, por exemplo, a experiência foi implementada em 2010, abrangendo toda a população, mas desde 2013 sofre os impactos das sanções comerciais ao país e da inflação. Hoje, o programa ainda chega a cerca de 90% da população, mas com metade do valor de quando foi implementado.
Já na Finlândia, a curta experiência de dois anos da renda básica foi encerrada com conclusões positivas e negativas: o nível de estresse entre os contemplados pela iniciativa caiu, e a qualidade de vida melhorou. Por outro lado, essas pessoas não conseguiram a reinserção no mercado de trabalho que o governo esperava. Petteri Orpo, ministro das Finanças do país, chegou a dizer ao jornal Financial Times que essa renda tornava as pessoas “passivas”.
Não foi bem o que o vereador de São Paulo Eduardo Suplicy, figura mais conhecida pela defesa da renda básica no Brasil, diz ter observado durante seus estudos sobre o assunto. Ele entrevista ao UOL, ele conta que, no Quênia, por exemplo, trabalhadores relataram estar trabalhando mais depois de passar a receber a renda do governo, porque a medida dava a eles recursos para investir no emprego, como, por exemplo, comprar ferramentas.
Brasil: a única lei (morta) sobre renda básica do mundo
É de autoria do então deputado Eduardo Suplicy a única lei do mundo que visa a implementar a renda básica em nível nacional. E ela já foi, inclusive, aprovada e sancionada em 2004. Chamada de renda básica universal, a medida idealizada pelo hoje vereador previa o repasse de um valor a todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no país há mais de cinco anos. A ideia era começar a implementação pelas camadas mais necessitadas da população e depois estendê-la ao restante.
Um dos motivos que tornou a lei “letra morta” foi o dissenso que perdura ainda hoje sobre como financiar a medida. Em sua coluna ao Estado de S. Paulo, o colunista Celso Ming afirma que “o problema da renda básica não é doutrinário, mas prático”, já que não existem meios de custear o projeto, ainda mais em tempos de crise econômica. Bem similar às discussões sobre o fim ou continuidade do auxílio emergencial que temos escutado por aí, não é? Também foi a falta de verba no orçamento da União que acabou afastando a possibilidade de ampliação do Bolsa Família para o Renda Brasil. A sugestão de cortar de um lado – o reajuste das aposentadorias, por exemplo –, para distribuir de outro, poderia causar mais problemas do que soluções.
Para Eduardo Suplicy, assim como para a matemática e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Tatiana Roque, a solução é uma só: reformar o sistema tributário brasileiro e distribuir renda a partir da taxação dos mais ricos. “Já precisamos mesmo taxar mais riqueza, lucros e dividendos, taxar mais a renda, criando faixas mais altas, taxar heranças e grandes fortunas. Essas necessidades já existem e podem servir para financiar a renda básica”, afirmou Roque em texto publicado no site da Rede Brasileira de Renda Básica.
O contexto da pandemia do Covid-19 também foi o propulsor para a criação da Frente Parlamentar da Renda Básica, composta por mais de 200 deputados e senadores dispostos a valer-se do momento crítico para reacender a discussão sobre garantir condições mínimas de vida por meio da distribuição direta de dinheiro.