O que é o Talibã e como o grupo tomou o poder no Afeganistão
Entenda como o grupo fundamentalista assumiu novamente o controle do país depois de 20 anos e por que isso é uma ameaça aos direitos humanos na região
Cenas do tumulto no aeroporto de Cabul, de pessoas penduradas em um avião durante a decolagem e de uma multidão tentando fugir do Afeganistão chocaram o mundo nos últimos dias. Veja a seguir os principais pontos para entender a situação no país.
Um vídeo gravado no aeroporto de Cabul, no Afeganistão, viralizou nesta segunda-feira, 16. É possível ver pessoas pendurando-se em um avião de transporte C-17, da Força Aérea dos EUA: https://t.co/WbH5kCNQZM pic.twitter.com/2oqhM3orER
— O POVO (@opovo) August 16, 2021
No domingo, 15 de agosto, o grupo extremista Talibã tomou a capital do Afeganistão, Cabul, e voltou ao poder quase 20 anos depois de ter sido expulso por tropas norte-americanas.
O presidente do Afeganistão Ashraf Ghani, e seu vice, Amrullah Saleh, fugiram do país e as forças de segurança afegãs ofereceram pouca resistência, apesar dos recursos disponíveis, enquanto os militantes do Talibã avançavam rapidamente pela região.
Essa tomada de Cabul já era um risco apontado por especialistas, que estavam apreensivos com a decisão dos Estados Unidos de retirar suas tropas do Afeganistão depois de duas décadas de ocupação, causando um vácuo de poder propício para o grupo avançar e derrubar o governo.
Com o Talibã de volta ao poder, a comunidade internacional e a população afegã já demonstram preocupações sobre o retorno de violações de direitos humanos. Milhares de civis tentam fugir da região e os que ficam temem as próximas ações do governo extremista.
Mas o que é o Talibã?
Talibã é um grupo fundamentalista islâmico formado no fim da invasão soviética do Afeganistão (1979-1989) por estudantes que defendiam uma rígida interpretação do Alcorão para governar o país. Talibã, inclusive, significa “estudantes” em pashto, uma das línguas faladas no Afeganistão.
“O grupo interpreta a religião de um jeito peculiar. Vê os outros ramos do Islamismo como deturpados e abertos ao ocidente, então, acreditam ser os portadores do ‘verdadeiro Islamismo’”, explica o professor de Geografia e Atualidades do Poliedro Curso, Daniel Simões.
Durante os anos que ficaram no poder, entre 1996 e 2001, eles prometeram eliminar qualquer influência estrangeira no país, e promover a paz e a segurança regional por meio da instauração de uma versão radical da Sharia, a lei islâmica. Foram adotadas medidas brutais e repressivas, colocando em xeque direitos humanos e culturais.
Formação do grupo e contexto histórico
A formação do Talibã, no Afeganistão, é um dos muitos efeitos colaterais da bipolarização entre Estados Unidos e URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) durante a Guerra Fria (1945-1991).
“Em 1978, os socialistas tomaram o poder no Afeganistão durante a Revolução de Saur. Os EUA e seus aliados, como a Arábia Saudita, passaram a apoiar o movimento de resistência, armando diversos grupos islâmicos. Nesse mesmo contexto, os sauditas financiavam Madrassas, escolas religiosas no Paquistão para onde as famílias afegãs, especialmente da etnia Pashtu, enviavam seus filhos. Foram nessas escolas que se organizou o grupo que criou o movimento Talibã”, explica James Onnig, professor do Laboratório de Pesquisa em Relações Internacionais da Faculdade de Campinas (FACAMP) .
O grupo de orientação sunita foi consolidado em 1994 exatamente pelos ex-guerrilheiros islâmicos conhecidos como mujahideen, que lutaram para combater a ocupação soviética no Afeganistão na década de 1980.
Na época, o objetivo dos Estados Unidos era impedir que os soviéticos expandissem seu domínio no Oriente Médio, e a ajuda militar norte-americana foi decisiva para a resistência afegã, segundo Luis Felipe Valle, professor de Geografia no colégio Oficina do Estudante. O discurso de que o ateísmo comunista atentava contra o islamismo também mobilizava tropas com motivação religiosa no país de maioria muçulmana.
“Após a dissolução da URSS, em 1991, governo e combatentes afegãos aguardavam pela ajuda estadunidense prometida para reconstrução do país devastado pela guerra, mas essa ajuda nunca veio”, diz o professor. Arruinado pelas crises internas, o cenário político do Afeganistão se tornou caótico em meio às disputas por poder entre grupos armados.
Em 1996, o Talibã conseguiu assumir o controle sobre a maior parte do país, tomou Cabul e o Afeganistão foi proclamado um emirado islâmico.
Após a expulsão dos soviéticos e diante do caos causado pelos conflitos, a população afegã via com um certo otimismo o controle do grupo na região. A popularidade se sustentou inicialmente pelo sucesso em reduzir a corrupção, coibir a criminalidade e pelos esforços para tornar as estradas e áreas sob seu controle mais seguras, estimulando o comércio.
Restrições, punições e a situação das mulheres
Durante o domínio talibã na região, as mulheres não tinham permissão para trabalhar ou estudar e deveriam ficar confinadas em casa. Elas só poderiam sair se estivessem acompanhadas de um homem. Era obrigatório o uso da burca, cobrindo todo o corpo, da cabeça aos pés, e mulheres acusadas de adultério eram apedrejadas na rua.
O Talibã também proibiu música, filmes, televisão e livros. Artefatos culturais foram destruídos. “Podemos lembrar que o grupo ordenou a queima da Biblioteca Central de Cabul em 1998, onde manuscritos milenares foram perdidos, bem como a destruição dos Budas de Bamiyan, construídos no século 5, quando mercadores chineses da rota da seda dominavam a região”, conta Onnig.
Os afegãos que continuaram consumindo produtos da cultura ocidental em segredo, corriam o risco de sofrer punições extremas de acordo com a interpretação radical da lei islâmica. Na época, açoitamentos, amputações e execuções públicas eram comuns.
Um dos ataques mais conhecidos do grupo foi em outubro de 2012 contra a estudante Malala Yousafzai, baleada aos 15 anos, na cidade de Mingora, no Paquistão, por defender o direito das mulheres de estudar.
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O 11 de setembro
A queda do Talibã ocorreu após os atentados de 11 de setembro de 2001. Dois aviões comerciais sequestrados foram arremessados contra as torres do World Trade Center, em Nova York, causando a morte de cerca de 3 mil pessoas. No mesmo dia, um terceiro avião foi arremessado contra o edifício do Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos EUA, e um quarto avião caiu na Pensilvânia antes de chegar ao seu suposto destino, a Casa Branca.
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Na época, o Talibã foi acusado de dar refúgio para o grupo fundamentalista Al-Qaeda, liderado por Osama Bin Laden e responsável pelos ataques. Os norte-americanos acreditavam que, além de esconder membros da organização e permitir que usassem o Afeganistão como base de operações para atividades terroristas, o Talibã financiava o grupo.
Em resposta aos ataques, os EUA lideraram uma coalizão que invadiu o Afeganistão em 2001, com pesados ataques aéreos e bombardeios.
“O presidente dos EUA na época, George W. Bush, deu início à ‘Guerra ao Terror’, movendo milhares de soldados estadunidenses para o Oriente Médio com a justificativa de erradicar grupos terroristas liderados por inimigos como Bin Laden, no Afeganistão, e Saddam Hussein, no Iraque”, explica Valle.
Em uma incursão terrestre, os norte-americanos forçaram a retirada dos talibãs das grandes cidades. O então líder do grupo, Mullah Mohammad Omar, e outras figuras importantes, como Osama Bin Laden, escaparam e supostamente se refugiaram na cidade paquistanesa de Quetta. A existência do que foi apelidado de “Quetta Shura” foi negada pelo Paquistão.
A coalizão derrubou o regime e a invasão que começou em 2001 duraria 20 anos.
Estados Unidos no Afeganistão
Após a invasão norte-americana, as tropas talibãs se enfraqueceram, mas não deixaram de existir. Depois de serem expulsos, os membros do grupo se espalharam e alguns líderes se refugiaram na fronteira com o Paquistão, onde conseguiram se reestruturar e buscar formas de retomar o poder, mantendo-se ativos e recrutando membros. Ao longo dos anos, realizaram ataques, mas a presença militar norte-americana e missões pontuais das forças ocidentais dificultaram a expansão do grupo.
Simões explica que o plano inicial, proposto por George Bush, era fazer uma “guerra rápida”, tornar o Afeganistão uma democracia, fazer eleições, ter um presidente legítimo e formar um exército forte, capaz de conter o Talibã sem a presença estrangeira. “Isso foi muito custoso em dinheiro e em vidas ao longo do tempo, por isso, surgiu um movimento crescente para que os americanos retirassem as tropas”. Mas a presença militar norte-americana se estendeu muito mais do que o previsto.
Com isso, a reprovação dos afegãos em relação aos EUA aumentou, abandonando o apoio à “Guerra ao Terror”. A presença das forças dos EUA, inclusive, ajudou o Talibã a mobilizar a população por meio de uma postura anticolonialista.
“Após 20 anos de intervenção militar estadunidense no Afeganistão, algumas poucas liberdades individuais foram conquistadas e houve um tímido avanço econômico no país, que continuou mergulhado em uma profunda crise econômica, à beira do precipício do fundamentalismo religioso defendido por milícias armadas como o Talibã e o Estado Islâmico”, diz Valle.
Negociações para a retirada das tropas norte-americanas
Com a saída de Bush e a entrada de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos, a retirada das tropas do Afeganistão foi ganhando apoio popular. Quando Donald Trump, crítico da presença militar dos EUA no Afeganistão, assumiu o cargo em 2016, prometeu tirar as tropas norte-americanas do Iraque e do Afeganistão. Enquanto isso, os ataques do Talibã se intensificavam.
Em fevereiro de 2020, Trump negociou um acordo de paz com o Talibã, em Doha, no Catar, comprometendo-se a retirar as forças militares do país e libertar cerca de cinco mil prisioneiros talibãs. Já o grupo fundamentalista prometeu não atacar as forças americanas e não permitir que qualquer grupo ou indivíduo, incluindo a Al Qaeda, usasse o Afeganistão para ameaçar a segurança dos EUA ou de seus aliados.
Mas o Talibã continuou atacando forças de segurança afegãs e civis, e avançou rapidamente em todo o país.
Em abril de 2021, o atual presidente norte-americano, Joe Biden, anunciou que todas as tropas americanas deixariam o país até 11 de setembro, duas décadas após os ataques aos Estados Unidos. A retirada precoce das tropas preocupava especialistas, autoridades e o povo afegão sobre a vulnerabilidade do governo sem o apoio internacional contra o Talibã e a retomada da violência na região.
Em maio, começaram as investidas dos talibãs, que já haviam conquistado milhares de combatentes. Em julho, os insurgentes já tinham tomado metade do território afegão e, no início de agosto, praticamente todas as grandes cidades eram dominadas pelos extremistas.
Consequências geopolíticas
Hoje, acredita-se que o grupo seja mais numeroso do que em qualquer momento desde 2001, com até 85 mil combatentes, segundo estimativas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
A rapidez com a qual o Talibã voltou ao poder surpreendeu o governo norte-americano, que previa a chegada do grupo a Cabul apenas em setembro. O próprio Pentágono precisou retirar às pressas os diplomatas norte-americanos da embaixada na capital.
A maioria dos países mostrou que não pretende reconhecer o grupo diplomaticamente e existe uma preocupação de que o Afeganistão volte a servir de refúgio para terroristas.
Toda essa movimentação tem sido acompanhada de perto pela Rússia e pela China, que possuem interesses estratégicos na Ásia Central.
“Tanto Rússia quanto China enxergam com apreensão essa nova situação. Sabem que, se fisicamente não existem mais tropas estadunidenses na região, existem riscos de que possíveis instabilidades internas do Afeganistão transbordem as fronteiras do país e cheguem à Ásia Central, região ainda com forte influência russa, e afetem também interesses chineses em seu megaprojeto da ‘Nova Rota da Seda’ (iniciativa busca criar grandes corredores de transporte e infraestrutura por toda a Ásia)”, explica Onnig.
Por enquanto, a China foi o único país a declarar oficialmente que pretende manter “relações amistosas e de cooperação com o Afeganistão” e começou a sinalizar cautelosamente que podem reconhecer o Talibã como um regime legítimo. China e Afeganistão são países vizinhos e têm 76 km de fronteiras em comum. “Há alguns meses, a China vem ensaiado aceitar o governo Talibã em troca de não ajudarem o movimento separatista dos Uigures, uma minoria muçulmana que habita o oeste chinês”, diz Simões.
Já a Rússia disse que reconheceria ou não o governo do Talibã de acordo com as ações do grupo.
Talibã no poder
Na terça-feira (17), um porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, concedeu uma entrevista coletiva na qual fez um discurso em um tom moderado, considerando as rígidas regras e violentas punições adotadas enquanto o grupo estava no poder há 20 anos.
Mas a fala foi recebida com ceticismo pelos afegãos e pela comunidade internacional. “Existe a preocupação de que se tornem, de novo, um grupo autoritário e passem a impor um regime repressivo”, explica Simões.
Já existem sinais de que o grupo começou a proibir as mulheres de trabalharem em certas áreas, com professores se despedindo de suas alunas nas universidades e empregadores dispensando as funcionárias. Além disso, horas após o grupo tomar Cabul, imagens de publicidade com mulheres começaram a ser retiradas das fachadas das lojas. Vitrines com imagens de mulheres sem véu foram arrancadas ou cobertas de tinta.
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“Sob controle tirânico do grupo fanático religioso fortemente armado, o país encontra-se numa encruzilhada que torna o caminho para a democracia praticamente impossível: de um lado, o imperialismo estadunidense imposto pelo controle militar estrangeiro; de outro, o uso da força armada para impor retrocessos sociais e econômicos pautados pela intolerância e pelo obscurantismo do grupo conservador ultranacionalista”, conclui Valle.
Como o tema pode ser cobrado nas provas
Segundo Simões, esse é um assunto bastante complexo, por isso, as provas não devem adentrar nuances muito detalhadas. Mas é preciso entender a história da região e as características do grupo. Também é importante entender como a atual situação se formou: “a Guerra Fria tornou o grupo conveniente, principalmente aos EUA, que queriam combater a União Soviética. Depois, o Talibã se radicalizou e contribui para os atentados de 11 de Setembro, que desencadeou uma grande onda de reações militares com o objetivo de estabilizar o mundo (Guerra ao Terror)”, resume o professor.
Onnig destaca que, pelo fato dos atentados de 11 de setembro completarem 20 anos em 2021, o tema também pode ganhar relevância nos vestibulares. “São duas décadas da chamada Guerra ao Terror. Os vestibulares vão explorar certamente as grandes mudanças na ordem mundial, marcada principalmente pela desestruturação institucional e humanitária de muitos países”, diz.