Anhanguera, Borba Gato, Fernão Dias… quem transita pela capital paulista – ou até mesmo pelo interior do estado de São Paulo – em algum momento vai esbarrar em uma estátua, rua ou praça em homenagem a estas figuras históricas. São quase sempre retratados como homens brancos, de postura altiva, trajados de chapéus e botas. Exploradores, em toda a extensão da palavra.
Os bandeirantes, que por mais de um século sequer foram reconhecidos por este nome, são elemento importante da história do Brasil e especialmente de São Paulo. A trajetória deles está diretamente atrelada à história da colonização do país, aos ciclos econômicos, à escravidão e até mesmo à tentativa de reescrever tudo isso.
Afinal, quem foram estes homens?
Quem foram os bandeirantes, quando ainda eram sertanistas
A figura do desbravador que adentra o Brasil colônia surge no século 17. Mais especificamente nas últimas décadas da União Ibérica, momento em que Portugal estava sob domínio Espanhol e que estendeu-se até 1640.
Nesta época, os holandeses haviam tomado dos portugueses o controle de muitos portos de escravos na costa africana. O evento estimulou ainda mais uma prática que já era comum na capitania de São Vicente, na porção sudeste do Brasil: a de aprisionamento de indígenas para servir de mão de obra escrava, em alternativa aos escravizados africanos.
Para adentrar o território brasileiro e caçar estes indígenas, eram organizadas as “bandeiras” – ou “entradas”, quando eram expedições conduzidas pelo governo. Homens portugueses ou descentes deles, que conheciam bem a região, entravam nas matas em buscas de indígenas.
Também eram contratados para reprimir rebeliões e matar indígenas e negros que se opunham à escravidão. É o que ficou conhecido como “sertanismo de contrato”. Os homens contratados para praticá-lo eram os “sertanistas”.
Com o tempo, estes exploradores acabaram ganhando outras atribuições. O ciclo do açúcar começou a entrar em decadência e, com isto, surgiram as “bandeiras de prospecção”, que tinham como objetivo a busca por metais preciosos em regiões inexploradas. No final do século 17 e início do século 18, estes homens partiam rumo à Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás caçando ouro e outros metais preciosos. Entre eles, nomes como Borba Gato, Bartolomeu Bueno da Silva (conhecido como Anhanguera) e Fernão Dias, eternizados séculos depois em monumentos e logradouros.
A construção de um mito
“O sertanista existiu, o bandeirante é um mito”, afirma Denise Moura, historiadora e professora da Unesp, em entrevista ao jornal Nexo. Ela explica que a palavra “bandeirante” soava mais cativante a uma elite que tentou, mais de um século e meio após o fim das expedições, alçar os sertanistas ao posto de heróis nacionais.
O próprio termo “sertanista”, por sinal, também não foi contemporâneo das bandeiras. O historiador Luís Soares de Camargo, ex-diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, explica em entrevista à BBC Brasil que a palavra não era utilizada antes do final do século 19. Em 1582, por exemplo, o capitão de São Vicente, Jerônimo Leitão, registrou uma queixa na Câmara daqueles que “iam ao sertão” sem permissão.
O termo “bandeirante” também só surgiu mais tarde. O primeiro registro dele em um dicionário de língua portuguesa, publicado pelo frei Domingos Vieira, é de 1871. Mas esta foi a palavra eleita nas primeiras décadas do século 20 para nomear aqueles que tornaram-se símbolo da bravura do povo paulista – e que precisavam ser rememorados em uma época na qual o estado enfrentava momentos de instabilidade social e política com a greve de 1917, o tenentismo e a própria revolta de 1924.
No artigo “Entre a história e a memória: a construção do bandeirante Fernão Dias Paes e o Mosteiro de São Bento“, Alberto Luiz Schneider, professor de História na PUC-SP, explica que esta fabulação em torno dos bandeirantes teve um dedinho de um célebre poeta brasileiro ainda em 1902. Olavo Bilac escreveu “O caçador de esmeraldas”:
Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada
Do outono, quando a terra, em sede requeimada,
Bebera longamente as águas da estação,
— Que, em bandeira, buscando esmeraldas e prata,
À frente dos peões filhos da rude mata,
Fernão Dias Pais Leme entrou pelo sertão.
Ah! quem te vira assim, no alvorecer da vida,
Bruta Pátria, no berço, entre as selvas dormida,
No virginal pudor das primitivas eras,
Quando, aos beijos do sol, mal compreendendo o anseio
Do mundo por nascer que trazias no seio,
Reboavas ao tropel dos índios e das feras!
Anos depois, o discurso do poeta já falecido ganhou forma nos círculos da elite paulistana. “Em torno de 1922, ano do Centenário da Independência, nenhum nome se compara ao de Fernão Dias Paes Leme (1608-1681) em termos de construção de memória”, conta Luiz Schneider em sua pesquisa.
Dentre os políticos e intelectuais da época que articularam-se em torno de construção dos bandeirantes, o nome de Afonso de Taunay, diretor do Museu Paulista ou Museu do Ipiranga entre 1917 e 1945 destaca-se. Foram erguidas inúmeras estátuas em homenagem aos antigos sertanistas, agora bandeirantes, com o objetivo, nas palavras de Taunay, “de combater a ‘densa treva’ que encobriria as ações e a personalidade dos bandeirantes.”
A exaltação dos bandeirantes enquanto representantes do heroísmo paulista perdurou por mais algumas décadas. O Monumento às Bandeiras, encomendado pelo governo paulista em 1921, só foi inaugurado em 1953. Já a estátua que homenageia o bandeirante Borba Gato começou a ser construída em 1957 e foi finalizada em 1963.
Ambas as obras foram alvo de protesto – e até tentativas de destruição – nos últimos anos. Exploradores, caçadores, heróis e assassinos, a figura dos bandeirantes atravessa um novo momento de disputa.
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