No sábado (24), a imagem esfumaçada da estátua de Borba Gato, localizada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, dominou o noticiário. A fumaça não era casual: um grupo de manifestantes ligado ao Movimento Entregadores Antifascistas ateou fogo à estátua, num eco às diversas derrubadas de estátuas que aconteceram nos Estados Unidos e na Europa recentemente.
O alvo foi intencional. Manuel Borba Gato (1628-1718), nascido em São Paulo, é um dos mais célebres bandeirantes – como ficaram conhecidos os homens que desbravaram regiões hoje conhecidas como São Paulo, Minas Gerais e Centro Oeste em busca de ouro, pedras preciosas e também para ocupá-las, expandindo o território do Brasil colonial.
Endeusados pela mítica paulista que começou a se formar na primeira metade do século 20, quando a capital começava a se configurar em metrópole, os bandeirantes têm sido hoje alvo de contestações e revisões históricas, em razão do caráter bárbaro e violento de suas ações, sobretudo em relação aos povos originários.
É fato também que boa parte deles – assim como toda a população paulista da época – era mestiça. Isso, claro, não diminui a injustiça a que os povos originários foram submetidos. Mas é também um fato que não pode ser ignorado.
E por que os Entregadores Antifascistas elegeram este alvo? Pelo que simboliza de opressão e violência. Para entender a contestação é preciso entender o movimento – e seu contexto. E aqui contamos um pouco da história do movimento.
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Qualquer morador dos grandes centros, sobretudo, já se deparou com a cena: rapazes jovens, às vezes muito jovens, pedalando pelo trânsito caótico e violento de cidades como São Paulo e o Rio de Janeiro com uma caixa de algum aplicativo de entrega nas costas, como se fosse uma mochila. Esses garotos, chamados de os “entregadores de apps”, tornaram-se o principal símbolo do alto desemprego e da precarização do trabalho, que atinge sobretudo os mais jovens, num país que não cresce nem gera empregos há sete anos.
Um levantamento feito pela BBC Brasil dá conta dessa tragédia social – que não diz respeito apenas ao presente, mas ao futuro desses jovens. Num país sem oportunidades, a disputa por um emprego qualificado se torna ainda maior. Mas como disputar um bom emprego tendo de pedalar 12h por dia?
O aumento da demanda por entregas vias apps durante a pandemia poderia significar, ao menos, um alívio na remuneração, uma vez que, havendo mais trabalho, haveria mais possibilidade de gerar renda. Mas o que se viu foi justamente o contrário, conforme uma pesquisa do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Cesit) divulgada pela BBC.
De acordo com a pesquisa, a taxa de entregadores que obtém uma remuneração inferior a R$ 260,00 por semana aumentou em quase 100%. Eram, em meados de 2020, 34,4% dos quase 300 entrevistados. Por outro lado, 62% passaram a trabalhar mais de nove horas por dia – eram 57% antes da pandemia. Mais de 50% trabalha sete dias por semana. 26,3% seis dias. Ou seja, o índice de entregadores que trabalha mais de cinco dias por semana beira os 80%.
Além disso, a maioria diz não ter recebido nenhum apoio durante a pandemia, apesar de toda exposição a riscos a que são submetidos. Os entregadores – a expressiva maioria do sexo masculino (94,6%), sendo mais de 80% na faixa dos 25 a 44 anos – não foram incluídos entre os grupos prioritários no Plano Nacional de Imunização (PNI), apesar de todas as evidências de que, sim, deveriam fazer parte deste grupo.
Em bairros como o Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, é comum ver, como já presenciado por este que vos escreve, entregadores muito jovens dormindo ou cochilando em grupo pelos bancos de madeira que há na rua Ataulfo de Paiva. Em geral, alguns dormem e outro permanece acordado, provavelmente para cuidar das bicicletas e celulares ou para alertar os colegas.
++ O que é a uberização do trabalho?
Foi em reação a essa realidade que surgiu, no ano passado, o Movimento Entregadores Antifascistas, cujo fundador e principal representante, Paulo Galo, está preso temporariamente em razão do ataque do coletivo à estátua do bandeirante Borba Gato. A sua prisão, bem como de sua companheira, recebeu críticas de especialistas do Direito, como o professor Silvio Almeida.
O grupo está presente em 11 estados e pleiteia melhores condições de trabalho. A primeira grande ação ocorreu no ano passado, com a greve dos entregadores, em 1º de julho. Houve antes uma reunião do movimento no Largo da Batata, em São Paulo.
Galo deixou a vida de motoboy em 2015. Trabalhava, desde 2012, como registrado. Por quatro anos, trabalhou como camelô, florista e repositor de mercado e técnico em telecomunicações, do qual foi demitido. Em 2019, para sustentar a filha de dois anos, voltou ao mundo das entregas. Desta vez não como funcionário contratado, mas como autônomo.
Segundo afirmou, a principal luta do movimento é conscientizar sobre os danos do processo mundial de uberização. “Ninguém é empreendedor. Nós é (sic) força de trabalho”, afirma. “A minha luta e dos entregadores antifascistas é por comida.”
Para saber mais
Documentário – Gig, a Uberização do Trabalho (2019), dirigido por Carlos Juliano Barros, Caue Angeli e Maurício Monteiro Filho. Disponível na íntegra no site da Globo News, no Net Now e no Vivo Play.
Filme – Você não estava aqui (2019), dirigido por Ken Loach. Disponível no Telecine.
Livro – Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 (Boitempo) organizado por Ricardo Antunes
Livro – Uberização: a nova onda do trabalho precarizado(Editora Elefante), de Tom Slee