Poucas histórias são tão fascinantes quanto as transformações políticas, culturais e sociais pelas quais a China passou durante o século XX. A vitória do líder comunista Mao Tsé-tung e a proclamação da República Popular da China, em 1949, mergulharam o país em um período de esperanças e turbulências, cujos reflexos moldaram a China que conhecemos hoje.
É justamente esse rico momento da história contemporânea o foco de Uma Vida Chinesa, trilogia em quadrinhos baseada na vida do desenhista chinês Li Kunwu, com a colaboração do diplomata francês P. Ôtié.
No primeiro livro, a narrativa acompanha o crescimento do garoto Xiao Li, cuja saga se confunde com a própria história da China maoísta. Nascido em 1955, o herói dessa epopeia cresce imerso no idealismo comunista do pai e ao culto à figura de Mao Tsé-tung. Sob a ótica de Xiao Li, vivenciamos toda a mobilização coletiva por trás de dois momentos-chave da China no século XX.
A euforia do Grande Salto Para Frente, um projeto que modificou a organização da zona rural para impulsionar a produção agrícola, logo vira frustração com a falta de alimentos que afeta toda a comunidade. Mas é a descrição da Revolução Cultural o grande destaque do primeiro volume. A campanha de perseguições políticas e humilhações públicas é narrada de forma sensível e ao mesmo tempo didática. A abordagem dos autores consegue envolver o leitor, que vê a estrutura familiar de Xiao Li ruir, e ensinar a partir de alguns exemplos dos excessos provocados por tais humilhações contra cidadãos considerados reacionários.
O segundo livro aborda o período imediatamente posterior à morte de Mao Tsé-tung, quando uma nova onda de euforia toma conta do país diante da ascensão dos reformistas liderados por Deng Xiaoping. Os personagens tentam deixar os abusos da Revolução Cultural para trás e vislumbram a modernização da China. Neste volume, a trajetória pessoal de Xiao Li no Exército ganha mais destaque, com sua tentativa de entrar no Partido Comunista Chinês.
O terceiro volume começa em 1982, época em que a revolução cultural havia dado lugar a uma reforma política e à abertura. A China entrava na era do desenvolvimento, enquanto Xiao Li, agora desenhista no jornal Yunnan Ribao, segue sua vida.
Nos três volumes, em meio às transformações da China, a narrativa tem como foi condutor a evolução do personagem principal como desenhista – dos primeiros traços da infância até a produção de cartazes enaltecendo o regime durante a liderança de Deng Xiaoping.
Aliás, vale ressaltar que, além de apresentar um ótimo retrato da China maoísta, Uma Vida Chinesa brinda o leitor com os belos traços em nanquim de Li Kunwu. As expressões dos personagens e a precisão dos detalhes de cada quadro saltam aos olhos e transformam a leitura em uma experiência ainda mais agradável.