“Quanto tempo vai levar para limpar tudo?”, pergunta o quadrinista italiano Zerocalcare, referindo-se ao rastro de destruição deixado pelo Estado Islâmico (EI) na cidade de Kobani, no norte da Síria. “Anos”, responde o combatente curdo que lutou contra o EI. “Mas todo mundo devia ver isso. Olhar os escombros. Sentir o cheiro. Compreender que hoje Kobani não é apenas uma cidade. Hoje Kobani é um museu a céu aberto da vergonha da humanidade. Daquilo que ela deixou acontecer”.
Esta é uma das passagens mais comoventes de Kobane Calling, uma espécie de diário de guerra ilustrado pelo jovem quadrinista Zerocalcare. Enviado por um jornal italiano, o autor esteve presente em algumas das principais frentes de batalha da Guerra da Síria, onde conheceu de perto a realidade dos curdos. Eles formam a maior etnia sem Estado no mundo, que vive principalmente em quatro países: Turquia, Iraque, Síria e Irã. A maioria dos curdos é de muçulmanos sunitas.
Os principais momentos da HQ se desenvolvem em Rojava, no norte da Síria, onde os curdos proclamaram uma confederação de viés liberal, onde há pluralidade étnica e religiosa, grande participação feminina e democracia participativa. É lá que atuam as Unidades de Proteção do Povo (YPG), a principal força de resistência curda na região, responsável por impor derrotas decisivas ao EI.
Ao participar dos trabalhos de ajuda humanitária, compartilhar experiências com a população local e acompanhar uma unidade feminina de treinamento de combatentes (a YPJ), Zerocalcare conseguiu produzir uma obra contundente, capaz de apresentar o lado dramático e humano do conflito.
Além disso, a utilização de interessantes recursos narrativos confere à obra um inusitado didatismo. Abusando da metalinguagem, Zerocalcare interrompe a história sempre que acha necessário contextualizar o conflito, situar o leitor geograficamente ou explicar as forças envolvidas na guerra. Dessa forma, ele consegue brincar com a visão estereotipada que a cultura ocidental tem do islamismo e com as simplificações que precisou fazer na história para facilitar o entendimento.
Em muitas situações o autor dialoga com um mamute que representa a sua autoconsciência, em um recurso utilizado para dar um tom mais crítico e analítico à narrativa. Tudo isso, recheado com referências pop que incluem games, filmes, séries e desenhos e ajudam a proporcionar uma identificação mais imediata com o leitor.
O resultado é um relato original e indispensável para qualquer um que queira conhecer um pouco mais sobre o protagonismo dos curdos na Guerra da Síria, tratado com bom humor e, acima de tudo, muito respeito.
Kobane Calling
Autor Zerocalcare
Editora Nemo, 274 páginas
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