Será que existe uma cultura que influencia o estupro de mulheres aqui mesmo no Brasil? O termo cultura do estupro voltou à tona após a enorme repercussão do caso de estupro coletivo ocorrido no mês de maio de 2016 no Rio de Janeiro. Os estupradores chegaram até a documentar seus crimes em vídeos (o que, por si só, é um crime). O Politize foi atrás de informação e veio contextualizar esse conceito para vocês.
EM PRIMEIRO LUGAR, O QUE É CULTURA?
Primeiro, vamos entender o que é cultura e qual seu papel nas nossas vidas. Denys Cuche em seu livro “A Noção de Cultura nas Ciências Sociais” (1999) explica que:
“(…) A noção de cultura se revela então o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura.”
Ou seja, ele quis dizer que temos que tomar muito cuidado ao naturalizar os nossos comportamentos, pois eles não são realmente “naturais”, e sim condicionados pela nossa cultura.
O termo “cultura do estupro” tem sido usado desde os anos 1970, época da chamada segunda onda feminista, para apontar comportamentos sutis ou explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher. A palavra “cultura” no termo “cultura do estupro” reforça a ideia de que esses comportamentos não podem ser interpretados como normais ou naturais. Se é cultural, nós criamos. Se nós criamos, nós podemos mudá-los.
O ESTUPRADOR PODE SER UM CONHECIDO
Quando se fala em estupro, há um imaginário comum por trás dessa ação que é quase cinematográfico. É mais fácil imaginar que os praticantes desse crime são monstros, pessoas mentalmente desequilibradas, pessoas que já estão marginalizadas pela sociedade e que nem possuem tanta noção do que estão fazendo.
Infelizmente, a realidade está distante do que aparece nos filmes. Segundo dados levantados numa nota técnica do IPEA em 2014, mais de 50% dos estupros sofridos por crianças e adolescentes foram praticados por pessoas conhecidas, como pais, padrastos, namorados e amigos. Em adultos, os estupros praticados por conhecidos são quase 40% dos casos.
Outro dado importante dessa nota técnica se refere à forma de coerção usada contra a vítima. Independentemente da idade da vítima ou da proximidade que o agressor tinha com ela, o estupro aconteceu por meio do uso da força física ou de ameaça em cerca de 50% dos casos. Ou seja, há um comportamento comum nesse crime de abuso que é entendido e compartilhado entre os agressores.
O estupro configura-se num crime contra a liberdade sexual. Popularmente, as pessoas entendem o estupro como um ato sexual não consensual. Essa interpretação é equivocada porque no próprio Código Penal o conceito de estupro é mais amplo. Ele é classificado como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Art. 213 da Lei Nº 12.015/2009).
“Ato libidinoso” refere-se a qualquer ação que tem como objetivo a satisfação sexual. Ou seja, não tem a ver somente com o ato sexual em si.
É importante registrar também que os dados do IPEA mostram que em cerca de 90% dos casos os agressores são do sexo masculino e que 88% das vítimas são do sexo feminino. Claramente, esse tipo de violência sexual costuma ser sofrida pelas mulheres e praticada pelos homens.
Esses dados refletem os trabalhos que os mais diversos coletivos de mulheres têm feito cada vez mais: mostrar onde está a violência que elas sofrem. Como já falamos, a cultura do estupro aponta comportamentos que são naturalizados e que atentam contra a liberdade sexual das mulheres.
E como já vimos que as mulheres são a maioria esmagadora das vítimas de violência sexual (88%), é fácil compreender que são elas que percebem mais facilmente onde e como sua liberdade sexual está em jogo.
COMPORTAMENTOS RELACIONADOS À CULTURA DO ESTUPRO
As mulheres têm se empenhado em apontar os comportamentos que ferem esse seu direito e buscam modificá-los na sociedade através de uma mudança de consciência. Segue abaixo uma breve lista de atitudes e comportamentos corriqueiros que colaboram com a cultura do estupro:
1. Assédio sexual
A mulher é abordada por homens rotineiramente. Isso ocorre nas ruas, no trabalho, na escola, no transporte público etc. O “fiu-fiu”, o abraço “apertado” do colega de trabalho, o beijo no rosto forçado pelo cliente, a proximidade “acidental” dos corpos masculinos nos transportes públicos são apenas alguns exemplos. Os homens, ao se sentirem à vontade para abordar as mulheres em qualquer espaço e contexto, atentam contra a liberdade sexual delas. Afinal, a liberdade reside no poder de escolha e no controle de quando e onde uma pessoa quer fazer ações de caráter sexual ou afetivo. Atualmente, com o assédio naturalizado, as mulheres não têm essa escolha. Elas são forçadas a aceitar a violência sem reagir, pois nunca se sabe como os homens lidarão com a rejeição.
2. Desrespeito ao “não”
Há um entendimento nocivo em relação à intenção da mulher quando ela fala “não” para algum homem. Do casamento à ficada, é frequente a mulher precisar se justificar em relação ao seu “não”. O “não” é bastante interpretado como jogo de sedução, onde a mulher quer, mas fala que não quer só para que o homem insista. Essa “brecha” fere a liberdade sexual da mulher, uma vez que ela já se posicionou dizendo “não” e ainda assim continua sendo coagida a dizer um “sim”. Os movimentos que pautam discussões contra a cultura do estupro querem que os homens se reposicionem nessas situações. Um único “não” deve ser necessário para que eles desistam de suas investidas.
3. Objetificação da mulher
Já tratamos desse assunto aqui. A objetificação ocorre quando a mulher é enquadrada num papel em que ela tem apenas uma função: despertar o desejo sexual do homem. Assim, os olhares direcionados a ela não são olhares para um indivíduo, para um ser humano e sim para um objeto a ser apreciado. Uma campanha publicitária em que as mulheres estão lá, em primeiro lugar, por serem bonitas e terem corpos esculturais, reforça a objetificação da mulher. Quando homens avaliam o caráter ou a intenção de uma mulher pela sua aparência física ou pela sua roupa, eles não estão a considerando como um indivíduo e sim como um objeto. Um objeto não tem opinião ou vontade própria. Um objeto é apenas o que ele mostra ser, e é possível fazer o quiser com ele.
4. Relativização da violência contra a mulher
Como abordado numa matéria da Superinteressante, o estupro é o único crime onde a vítima é julgada junto com o criminoso. A segurança que todo cidadão sente ao procurar a polícia quando é furtado ou assaltado não existe para as vítimas de estupro. Ao contrário da maioria dos crimes, onde a vítima precisa apenas informar às autoridades o que sofreu e essas autoridades entendem o seu relato como algo legítimo, as vítimas de estupro não são legitimadas já de início.
Como os dados também mostram que a maioria dos agressores são pessoas conhecidas das vítimas e que eles usam da força física ou da ameaça como forma de coagi-las, é possível entender por que apenas 10% dos casos são denunciados, como mostra a nota técnica do IPEA. As vítimas sofrem inúmeras barreiras para levar esses crimes para as autoridades. Nesses espaços, onde essas vítimas deveriam ser acolhidas, o que encontram é desconfiança e descrença acerca da violência que sofreram. Dividir parte da culpa de um crime de violência sexual com a própria vítima é atenuar a ação do agressor. Os movimentos que pautam discussões sobre a cultura do estupro querem conscientizar as pessoas de que precisamos, primeiro, gerar incentivos para as vítimas de violência sexual reportarem esses crimes para as autoridades. Isso não vai acontecer enquanto elas se sentirem julgadas, questionadas e não amparadas pela sociedade e pelas instituições.
Combater a cultura do estupro implica estarmos atentos a toda e qualquer atitude cotidiana que agride a liberdade sexual da mulher. As duas palavras-chave que auxiliam nesse processo são: consenso e respeito. Precisamos respeitar mais a mulher enquanto indivíduo, enquanto ser humano que ela é. Com seus desejos, medos, ambições e sonhos. Ela não é um objeto a ser apreciado onde quer que esteja, ela não é um enfeite para vender produtos ou mostrar para as pessoas, ela não é obrigada a satisfazer vontades sexuais das quais ela não compartilha. A mulher livre é a mulher que não teme.
Referências:
CUCHE. Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. EDUSC, Bauru-SP, 1999.
IPEA – Planalto – Super Interessante
Texto publicado originalmente no site Politize!.