Tortura no Brasil: conheça fatos históricos e polêmicas
Veja como a prática foi utilizada no Brasil e suas consequências
A HISTÓRIA DA TORTURA NO BRASIL
No Brasil, a tortura foi usada desde a chegada dos portugueses em 1500 como meio de obter provas através da confissão. Além disso, a exploração dos índios e a escravidão dos negros são consideradas a maior crueldade histórica do país.
Segundo os dados, foram cerca de 1.700.000 (um milhão e setecentos mil) africanos trazidos, na condição de escravos para o Brasil em 300 anos (1550-1888). Durante esse longo período escravista, a violência foi uma das características marcantes desse sistema socioeconômico. As práticas de tortura foram utilizadas com o intuito de controlar e punir as ações dos cativos frente aos seus senhores além de servir de exemplo para a obediência e bom comportamento dos outros cativos. O chicote, o tronco, a máscara de ferro, o pelourinho eram os recursos mais comuns demonstrando que os castigos obedeciam a critérios racionais, tornando-se eficientes enquanto mecanismos de dominação, exploração e controle sobre o corpo e mente de milhões de negros e negras da época (MATOSO, 1990).
Durante séculos a tortura era tida como aceitável para manutenção da ordem. A preocupação com a dignidade humana tornou-se objeto de convenções internacionais somente a partir Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, quando os meios de tortura transformaram-se em práticas cruéis. No Brasil, com a Constituição de 1824, a tortura foi proibida às pessoas consideradas na época parte do povo brasileiro (os bem nascidos, ricos e, portanto, homens livres). No entanto, continuou sendo aplicada a negros e indígenas, considerados meros objetos na sociedade.
Tortura no Brasil: o Estado Novo de Getúlio Vargas
A prática esteve presente por muito tempo também no Estado Novo (1937-1945), período ditatorial no governo de Getúlio Vargas em que um “estado policial” foi formado. Não havia a garantia das liberdades individuais, liberdade de expressão, direitos políticos e civis, além de as autoridades policiais (delegados, oficiais e soldados) possuírem poder praticamente ilimitado sobre o objeto de suas investigações e sobre os indivíduos.
A repressão da época e o endurecimento do poder policial do Estado eram as brechas necessárias para a utilização da tortura e também de assassinatos com finalidade de punir atos considerados “comunistas”, mas devido à censura à imprensa, poucos desses crimes vieram a conhecimento público. Quase todos foram abafados nos porões das próprias delegacias.
TORTURA NO BRASIL: O REGIME MILITAR
Não foi diferente durante o regime militar (1964-1985). Em plena Guerra Fria, a elite brasileira posicionou-se do lado dos Estados Unidos e da direita ideológica, favorável à lógica do capitalismo. Instaurar uma ditadura era a maneira de proteger o Brasil combatendo a ideologia comunista e aqueles que a defendiam.
Institucionalizada no país, o regime militar tornou-se um período delicado em nossa história. Os métodos de violência física e psicológica instalados desde o primeiro dia que foi instaurado o regime. Recife foi um dos lugares que mais sofreu atrocidades dos militares, tendo civis agredidos e mortos em passeatas que protestavam a favor da democracia. O líder camponês e comunista Gregório Bezerra foi a primeira vítima de tortura. No dia do golpe cívico-militar, o coronel Villocq amarrou Gregório com cordas e ordenou que soldados o arrastassem pelas ruas de Recife, humilhando-o verbalmente e espancando-o. O coronel incitava o povo para ver o “enforcamento do comunista”. Diante do horror, religiosos pressionaram o general Justino Alves Bastos, que impediu um martírio, no entanto, não conseguiu evitar que Gregório levasse coronhadas pelo corpo e tivesse os pés queimados com soda cáustica.
Outro caso causou grande repercussão e revolta na época. Mesmo diante de evidências, o governo militar jamais admitiu que havia tortura no Brasil. Contudo, em 1966, foi encontrado boiando no rio Jacuí, em Porto Alegre, o corpo do sargento Manoel Raimundo Soares, já em estado de putrefação, com as mãos amarradas para trás e o corpo com marcas de tortura. O sargento fazia parte dos militares expulsos do exército por causa do seu envolvimento com a militância política para a volta de João Goulart ao governo. O ocorrido ficou conhecido popularmente como o “caso das mãos amarradas”. Os militares prometeram investigar as circunstâncias da morte do sargento e punir culpados, mas arquivaram o caso por muitos anos causando revolta.
Como era a tortura no regime militar?
Foram cometidas inúmeras atrocidades contra os que se opunham ao regime, estudantes, intelectuais e engajados políticos foram as principais vítimas. Foram criados também órgãos do governo com o intuito de garantir a ordem desejada e os interesses da direita no combate à “ameaça comunista”. Um desses órgãos foi o DOI-CODI, que representou o ambiente da maioria dos assassinatos e torturas dos opositores do sistema e a vários estudantes integrantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) que promoviam marchas contra a ditadura.
O Destacamento de Operações de Informações (DOI) e o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) centralizaram o combate aos grupos de esquerda que se opunham ao governo. Com uma estratégia militar e com táticas policiais, o destacamento uniu militares das Forças Armadas e integrantes das Polícias Civil, Militar e Federal.
As torturas físicas e psicológicas faziam parte do cotidiano do DOI-CODI e eram utilizadas por esses membros e outros grupos militares com o objetivo de controlar a população ou obter informações. Choques elétricos, pau-de-arara, afogamentos, palmatória, mutilação de membros, agressões físicas e torturas psicológicas, como ameaças e perseguições, eram usadas para causar medo de maneira explícita, já que, frente a essas crueldades, os indivíduos se calavam ou delatavam seus parceiros.
Inúmeros foram os casos semelhantes ao de Gregório Bezerra e Manoel Raimundo. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) ao apurar o período ditatorial no Brasil e os atos de violação de direitos humanos ocorridos, listou pelo menos 434 mortes ou desaparecimentos forçados. Destas 434 mortes, 191 pessoas foram assassinadas; 210 tidas como desaparecidas e 33 foram listadas como desaparecidas, mas depois seus corpos foram encontrados. Os números segundo a CNV não correspondem ao total de mortos e desaparecidos, mas apenas ao de casos cuja comprovação foi possível.
O COMBATE À TORTURA NO BRASIL
Mesmo com a Proclamação da República (1889), apesar dos inegáveis avanços das liberdades públicas, os movimentos de oposição à elite governante na época foram combatidos com violência e seus simpatizantes submetidos às práticas de tortura e a tratamentos degradantes. Tal prática ocorreu no Movimento de Canudos (1896-1897), confronto entre um movimento popular de fundo sócio-religioso da Bahia e o Exército da República, ou a Revolta da Chibata (1910-1914) uma revolta militar em que soldados da Marinha realizaram um motim para reivindicar melhores condições de trabalho.
O combate à prática da tortura foi firmado em lei com a Constituição Federal de 1988. Desde então, encontramos no artigo 5º. III, XLIII e XLVII, expresso o repúdio à prática da tortura e penas degradantes, desumanas ou cruéis, além do interesse em proteger a integridade física e moral do preso (art. 5º., XLIX).
No entanto, em termos legais, a tortura ainda não havia sido tipificada como crime, ou seja, não existia um tipo penal que tratasse de maneira específica desse comportamento como um crime, apesar de a prática não ser permitida e punida por outras figuras penais, como lesões corporais, abuso de autoridade, constrangimento ilegal, maus tratos, entre outras.
A TORTURA É CRIME NO BRASIL?
O Brasil é signatário da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes firmada pela ONU, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional para a Defesa de Direitos Civis e Políticos, da Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Mas foi apenas em 1990 que o Código Penal, com a Lei nº 8.072/90, passou a prever a tortura como um crime hediondo, ou seja, extremamente grave que não permite anistia, indulto e fiança.
A lei contra a tortura no Brasil foi concebida em 1997 para suprir uma “lacuna legislativa” ou seja, a inexistência de um tipo penal que tratasse especificamente desse comportamento. Não que tortura fosse permitida anteriormente, mas era punida somente por meio de outras figuras penais, como lesões corporais, abuso de autoridade, constrangimento ilegal, maus tratos, etc. A Lei nº 9.455 passou a definir o crime de tortura como ato de:
Constranger alguém através de violência ou grave ameaça, causando sofrimento físico e mental a fim de:
a) obter informação, declaração ou confissão;
para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
em razão de discriminação racial ou religiosa;
2. Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
A pena para esse crime é reclusão de três a seis anos e é considerado um crime doloso, pois existia a intenção em cometer tal crime. Também é considerado um crime formal, já que independe de resultado, basta a conduta para que seja consumado o crime.
Polêmicas sobre tortura no Brasil e no mundo
Na atualidade, muitos são os casos de tortura, embora muitas vezes camuflados pela mídia. No Brasil, a prática ainda está presente em nosso cotidiano, principalmente em relação às condutas policiais que se utilizam do poder para constranger pessoas com emprego de violência ou grave ameaça, causando sofrimentos físicos ou mentais.
A partir dos dados coletados pelo SOS Tortura, como principais motivações para a tortura estão os castigos (38%) – empregados em presos e suspeitos de crimes – e a obtenção de confissão ou informação (33%), que ocorre, em geral, no âmbito das investigações policiais e durante o policiamento. Em 12% dos casos comunicados ao SOS tortura, não foi informado o motivo da violência, em 9% a tortura ocorreu com fins de intimidação e 8% tiveram motivos diversos.
A ONU, em 2007, apresentou um relatório durante o Encontro Anual do Comitê das Nações Unidas Contra a Tortura, na Suíça, onde afirmava que a tortura é “sistemática nas cadeias, delegacias e presídios brasileiros”. Esta conclusão foi tirada após a visita de peritos deste órgão que fizeram uma vistoria em diversos presídios brasileiros e concluíram pela prática recorrente da tortura nestes estabelecimentos. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura constatou as seguintes práticas: espancamentos, queimaduras, choques elétricos nos genitais, afogamento, sufocamento com saco plástico, perfuração abaixo das unhas, “telefone” (bater nas duas orelhas simultaneamente), remoção de unhas, humilhações verbais e ameaças.
A Comissão da Verdade em 2014, após estudos, também reconheceu violações graves de direitos nos presídios e recomendou medidas que acelerassem julgamentos, limitassem as prisões provisórias e fiscalizassem o sistema penitenciário. Em 15 anos, estima-se que o Brasil prendeu 7 vezes mais que a média e há, hoje, mais de 550 mil pessoas presas e alocadas em presídios superlotados onde, quatro em cada dez detentos estão na cadeia ainda sem julgamento.
Segundo dados de 2017, do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o Brasil possui aproximadamente 726 mil presos e tem terceira maior população carcerária do mundo onde 55% dessa população prisional é majoritariamente jovem e 61% negra.
A severa superlotação das prisões brasileiras, a falta de julgamentos, as inúmeras rebeliões e mortes por parte dos próprios detentos demonstram as condições caóticas dentro das unidades prisionais. No entanto, as violentas ações militares durante os períodos de repressão no país são ainda encontradas na maioria dos presídios brasileiros e são também um problema urgente já que muitas vezes não há oportunidade de os condenados denunciarem tais agressões.
Esta matéria foi publicada originalmente no Politize!