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Venezuela: Um país à beira do abismo

UM PAÍS À BEIRA DO ABISMO

O descontrole econômico e a radicalização política afundam a Venezuela em uma grave crise que compromete os recentes avanços sociais

Por Fábio Sasaki

Venezuela: Um país à beira do abismo
“Não há comida” Protesto em maio de 2016 contra o presidente Nicolás Maduro, em Caracas: inflação e desabastecimento no foco da crise ()

Fazer compras em um supermercado na Venezuela atualmente representa um duplo desafio. Primeiro, porque é bastante raro encontrar itens básicos como pasta de dente ou farinha. Por sua vez, quando as prateleiras são abastecidas, a hiperinflação é tão feroz que corrói o valor dos bolívares, a moeda local, impossibilitando a compra de alimentos como carne ou frango. Também não é fácil encontrar remédios, especialmente para doenças como hipertensão ou diabetes. Estas são apenas algumas das consequências mais visíveis da pior crise econômica já enfrentada pelo país.

Em meio a esse caos econômico, a política venezuelana não traz qualquer sinal de que a situação possa ser revertida no curto prazo. O governo do presidente Nicolás Maduro, de quem deveria partir as iniciativas de estímulo econômico, encontra-se praticamente paralisado. Em um quadro de extrema polarização política, situação e oposição estão literalmente em pé de guerra. Protestos e confrontos envolvendo partidários dos dois campos são frequentes. A disputa se radicalizou ainda mais a partir da iniciativa da oposição de convocar um referendo revogatório – a Constituição venezuelana dispõe de um mecanismo de consulta popular para decidir se o presidente deve completar ou não o seu mandato.

As mudanças na Era Chávez

Dona das maiores reservas mundiais de petróleo, a Venezuela foi controlada durante a maior parte do século XX por grupos oligárquicos que se apoderaram do Estado e dos recursos provenientes da exportação do produto, o que gerou uma enorme concentração de renda. Em 1992, em meio a um cenário de convulsão social, uma tentativa fracassada de golpe de Estado levou diversos militares para a cadeia. Entre eles estava o coronel Hugo Chávez, que despontou como uma importante liderança na defesa de um projeto de soberania nacional. Esse prestígio foi fundamental para a eleição de Chávez como presidente em 1998.

No poder, Chávez colocou em prática o que chamou de “Revolução Bolivariana”, em referência a Simón Bolívar (1783-1830), herói da independência na América do Sul. Entre as medidas de maior impacto de sua gestão, destacam-se a regulamentação da reforma agrária, o fortalecimento da empresa estatal de petróleo, a PDVSA, restringindo a participação de multinacionais na exploração, e a estatização de setores considerados estratégicos na economia, como energia elétrica e telecomunicações.

Na área social, ampliou o acesso à saúde, à educação e à habitação para as camadas mais pobres. Essas ações, somadas a uma ampla rede de proteção, que garantiu comida, medicamentos e itens básicos por meio de subsídios e controle de preços, promoveu enormes avanços sociais, reduzindo a pobreza de 49% para 27% da população, entre 1999 e 2012. Nesse período, a renda per capita saltou de 4.105 dólares para 10.810 dó- lares por ano. A Venezuela tornou-se o país menos desigual da América Latina.

Boa parte desses avanços foi financiada com a bonança do petróleo, cujo valor atingira preços recordes no período. As receitas com as exportações do produto também foram fundamentais para que a Venezuela projetasse sua influência internacionalmente, liderando um conjunto de países na América Latina que compartilhava valores em comum, como a proposta estatizante da economia e a oposição à ingerência dos Estados Unidos (EUA) na região. Bolívia, Equador, Nicarágua e Cuba gravitaram durante muitos anos sob a órbita venezuelana, no chamado “bloco bolivariano” .

Mas as conquistas sociais da Era Chá- vez foram ofuscadas por uma condução política autoritária, marcada por uma série de medidas de concentração de poder. Respaldado por uma bancada favorável no Congresso, Chávez conseguiu aprovar leis que fortaleceram o Poder Executivo e permitiram a reeleição por tempo indeterminado. Além disso, foi acusado de cooptar o Judiciário para ratificar suas medidas e perseguir a oposição. Embora não seja caracterizada como uma ditadura, já que havia eleições livres e justas, a Venezuela tampouco poderia ser considerada uma democracia plena.

Venezuela: Um país à beira do abismo
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Maduro presidente

A morte de Chávez em março de 2013, vítima de um câncer na região pélvica, comoveu a população, que parecia antever as nuvens mais carregadas que se aproximavam. É verdade que, nos últimos anos do governo Chávez, a economia do país já dava sinais de declínio, mas o contexto econômico e político que se seguiu à sua morte agravaram o quadro.

No mês seguinte à morte de Chávez, seu vice, Nicolás Maduro, foi eleito para um mandato presidencial de seis anos, derrotando Henrique Capriles, o principal nome da oposição. O primeiro ano de seu mandato foi tenso. Foi nesse período que a inflação disparou e o desabastecimento tornou-se mais frequente. Em fevereiro de 2014, os protestos contra o governo se espalharam em diversas cidades, ocasionando 42 mortes. Acusados de incitar um golpe, diversos políticos da oposição foram presos. Consolidava-se, assim, o quadro de polarização política que atualmente paralisa o país.

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Chavismo. O presidente da Venezuela Nicolás Maduro; ao fundo, uma imagem do ex-presidente Hugo Chávez ()

As causas da crise

Mas como a Venezuela pôde regredir tanto em questão de poucos anos? A resposta não é simples, mas é possível apontar alguns dos aspectos mais decisivos na falha da condução econômica. A razão mais evidente é que a Venezuela é extremamente dependente do petróleo, responsável por 96% de suas receitas com exportação. Se em 2008, durante o auge do chavismo, o barril chegou a superar os 120 dólares, desde então seu valor vem caindo, mantendo-se, desde 2014, abaixo dos 50 dólares. Sem essa fonte de recursos, o governo perdeu a capacidade de importar muitos itens de necessidade básica e reduziu os investimentos sociais. Em uma economia mais diversificada, o país não ficaria tão vulnerável à flutuação do preço do petróleo.

Uma outra ação tomada desde o período do governo Chávez impediu o desenvolvimento de um setor empresarial mais dinâmico: o controle de preços. Adotado inicialmente como medida paliativa para conter a inflação e garantir que a população mais pobre tivesse acesso a produtos essenciais, o congelamento se prolongou por muitos anos sem resolver o problema. Pior: a medida acabou desestimulando os investimentos da iniciativa privada, uma vez que, em muitas situações, os itens acabavam sendo vendidos a preços inferiores ao custo de produção. Consequentemente, os produtos sumiram das prateleiras, gerando a atual crise de abastecimento.


A dependência do petróleo e o controle do Estado sobre os preços e o câmbio são algumas das razões da crise


O controle do Estado sobre o câmbio, adotado desde 2003 com o objetivo inicial de impedir a fuga de dólares do país e controlar a inflação, também desestruturou a economia. Esse complexo sistema funciona assim: o governo mantém duas taxas de câmbio, uma delas com a cotação do dólar mais barata para ser utilizada apenas na importação de insumos de primeira necessidade. O problema é que boa parte desses dólares é desviada ilegalmente por militares e membros do governo, que os revendem no mercado paralelo, cuja cotação chega a ser 100 vezes maior que o câmbio oficial. Essa medida não apenas alimenta a corrupção, como provoca uma escassez de moeda estrangeira que deveria ser utilizada para as importações e para os investimentos do setor produtivo, agravando o problema de abastecimento.

Para Maduro, boa parte da responsabilidade pela crise é da oposição, acusada de desestabilizar o país e cooptar empresários para reter seus produtos. O presidente também culpa os EUA, cujo governo declarou, em 2015, que a Venezuela representa uma “ameaça à segurança nacional e à política externa” do país. No entender de Maduro, essa é uma forma de os EUA pressionar investidores estrangeiros a desistir da Venezuela e impedir que bancos internacionais concedam empréstimos ao país.


Suspenso do Mercosul, país se isola ainda mais

a crise na Venezuela também abala a projeção regional obtida nos últimos anos. Em dezembro de 2016, o país foi suspenso do Mercosul, o principal bloco econômico da América do sul. a razão alegada é que os venezuelanos não cumpriram todas as regras de adesão ao bloco desde que ingressaram, em 2012, o que inclui normas de comércio e de respeito aos direitos humanos.

Mas há outras questões políticas por trás da decisão. O Brasil, que nas gestões do Pt (2003-2016) foi um importante parceiro da Venezuela, mudou de posição após a posse de Michel temer. O novo governo brasileiro passou a criticar abertamente a Venezuela e liderou o movimento para boicotar o país no Mercosul. Paralelamente, os venezuelanos também já não exercem a mesma liderança entre os parceiros bolivarianos e perderam a capacidade de ajudar financeiramente países como Cuba.


O referendo revogatório

Esse desarranjo econômico pode ser traduzido em alguns números. Segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2016 a inflação superou os 700% e o Produto Interno Bruto (PIB) caiu mais de 10%. A pobreza voltou a aumentar e já atinge 33% da população, o maior índice desde 2006.

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Por isso, a posição de Maduro no poder é cada vez mais frágil. A oposição, que acabou com a hegemonia chavista ao conquistar a maioria das cadeiras na Assembleia no final de 2015, iniciou uma campanha para a realização de um referendo revogatório. Trata-se de uma votação na qual os eleitores venezuelanos decidiriam se Maduro deve completar o mandato até o fim ou ceder o poder.

Para a realização dessa votação, a oposição cumpriu uma série de etapas. Mas tribunais de cinco estados suspenderam o processo em outubro, quando a última fase estava para ser concluída – o recolhimento de assinaturas de 20% das pessoas habilitadas a votar. O motivo foi uma suposta fraude na fase anterior do processo, que consistia no recolhimento de 200 mil assinaturas.

A suspensão atrasou o processo e enfureceu a oposição. Isso porque, se o referendo fosse realizado até o dia 10 de janeiro de 2017, data em que se completaram dois terços do atual mandato presidencial, novas eleições seriam convocadas caso Maduro fosse destituído. Agora, se a população decidir abreviar o mandato de Maduro no referendo, quem assume é o vice-presidente, Tareck El Aissami, identificado com a linha dura do chavismo.

Enquanto a oposição pressiona pela votação, as tentativas de diálogo com o governo parecem infrutíferas. No final de 2016, as negociações mediadas pelo Vaticano foram abortadas devido aos interesses divergentes entre as duas partes. Sem qualquer perspectiva de conciliação, esse quadro de polarização deve prolongar não apenas o impasse político como também o sofrimento da população venezuelana.

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Venezuela

CRISE A Venezuela enfrenta a pior crise econômica de sua história, com inflação galopante, recessão e aumento da pobreza. Faltam itens básicos nos supermercados, como alimentos, produtos de higiene e remédios. Na política, o presidente Nicolás Maduro enfrenta forte oposição, em um quadro de radicalização política que paralisa o país.

CHAVISMO Eleito em 1998, Hugo Chávez introduziu um conjunto de reformas, as quais chamou de “Revolução Bolivariana”, a partir de medidas pautadas pelo controle do Estado em setores estratégicos, como petróleo, eletricidade e telecomunicações. Levou saúde, educação e moradia para os mais pobres e reduziu a desigualdade. Mas os avanços sociais foram ofuscados pela forma autoritária com que conduziu o país.

RAZÕES DA CRISE Após a morte de Chávez, em 2013, os erros na condução econômica afloraram. Extremamente dependente do petróleo, o país se viu sem recursos com a queda do preço do barril no mercado internacional. O prolongamento do controle de preços não estancou a inflação e provocou desabastecimento de produtos, além de inibir o setor produtivo. O controle de câmbio desestruturou a economia e afetou as importações.

MERCOSUL Em dezembro, o país foi suspenso do Mercosul por não cumprir as normas necessárias de adesão ao bloco. Mas há outras questões políticas por trás da decisão. O novo governo brasileiro, ao contrário da gestão anterior do PT, é hostil ao bolivarianismo e liderou o movimento para suspender a Venezuela do bloco.

REFERENDO A oposição pressiona pela saída de Maduro e tenta aprovar a convocação de um referendo revogatório – um dispositivo constitucional que permite aos eleitores decidir se o presidente deve ou não terminar o seu mandato. A oposição precisa reunir um número mínimo de assinaturas em favor do referendo para a sua realização. Se a votação for realizada e os eleitores decidirem pela saída de Maduro, quem assume é o vice-presidente.

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