Dossiê – Intolerância: preconceito a flor da pele
A intolerância contra os negros é uma herança cultural e social que persiste, principalmente nos países que adotaram a escravidão, como os Estados Unidos e o Brasil
A intolerância contra os negros é uma herança cultural e social que persiste, principalmente nos países que adotaram a escravidão, como os Estados Unidos e o Brasil
A pacata cidade de Charlottesville, no estado norte- americano da Virgínia, foi palco, em agosto de 2017, de um dos mais graves conflitos raciais dos Estados Unidos (EUA) nos últimos anos. Foi um “desfile covarde de ódio e intolerância”, conforme definiu o prefeito da cidade. Na ocasião, um grupo de supremacistas brancos marchou pela cidade carregando tochas, vestindo capacetes, escudos e cassetetes e dizendo palavras de ordem nazistas. Eles protestavam contra a retirada de uma estátua do general Robert E. Lee, comandante dos confederados – estados do sul dos EUA que, entre outras bandeiras, defendiam a manutenção da escravidão durante a Guerra Civil Americana (1861-1865). Quando grupos antirracismo e de defesa dos direitos humanos se manifestaram em repúdio à ação, os confrontos tiveram início. Um motorista ligado à marcha racista atropelou diversas pessoas, deixando uma mulher do grupo antirracismo morta e dezenas de pessoas feridas.
Os defensores da ideologia da supremacia branca, identificados com a extrema direita do espectro político, afirmam que as pessoas brancas são superiores a outras etnias e consideram a diversidade racial uma ameaça. Entre os grupos supremacistas que participaram da marcha em Charlottesville estão os neonazistas e a Ku Klux Klan (organização fundada em 1866 e conhecida por seus crimes de ódio contra os negros). Em meio a essa latente tensão racial, o presidente norte-americano, Donald Trump, conseguiu acirrar ainda mais os ânimos em sua primeira declaração após o incidente. Ele condenou a violência de forma geral e “os vários lados” do conflito, nivelando racistas e antirracistas. Ao evitar citar nominalmente os supremacistas brancos e as organizações extremistas envolvidas no incidente, Trump procurava preservar uma parcela importante do eleitorado que o ajudou a vencer a disputa presidencial de 2016.
Após forte repúdio da opinião pública, Trump voltou a se manifestar dias depois, desta vez afrmando que o “racismo não tem lugar na América” e referindo-se à Ku Klux Klan, aos neo- nazistas e aos supremacistas brancos como “repugnantes a tudo que prezamos como americanos”. Mas o estrago já estava feito, esgarçando o já frágil tecido social norte-americano.
A ideia da superioridade racial
O racismo pode ser definido, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), como a convicção de que existe uma relação entre as características físicas hereditárias, como a cor da pele, e determinados traços de caráter e inteligência. O racismo subentende ou afirma que existem raças puras, que são superiores às demais e que tal superioridade autoriza uma hegemonia social e política. Ao longo da história, a crença na existência de raças superiores e inferiores foi usada para justificar a escravidão, o domínio e até o extermínio de determinados povos por outros. Foi isso que ocorreu na Alemanha nazista, entre 1933 e 1945, quando cerca de 6 milhões de judeus (e também ciganos, pessoas deficientes e homossexuais) foram perseguidos e exterminados, por serem considerados uma “raça deformada” que ameaçava a “pureza da raça ariana”.
Outro exemplo foi o apartheid, o regime institucionalizado de segregação racial que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994, que na legislação do país proibia os negros de conviverem com os brancos e de desfrutarem dos mesmos direitos. Ainda na África, outro caso extremo de violência étnica aconteceu em Ruanda, em 1994. Os intensos conflitos entre hutus e tutsis resultaram no genocídio de cerca de 1 milhão de pessoas, a maioria da etnia tutsi.
Racismo no Brasil
Ainda que essas práticas tenham ficado para trás e ocorrido um avanço na sociedade em geral sobre o entendimento do racismo e as formas de combatê-lo, a discriminação pela cor da pele é uma herança cultural e social que persiste, sobretudo, nos países colonizados por europeus e que adotaram a escravidão de africanos como sistema de produção. Os primeiros escravos chegaram ao Brasil no século XVI – estima-se que, entre 1550 e 1850, tenham vindo cerca de 4 milhões de negros trazidos do continente africano. A escravidão só foi abolida em 1888, com a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, após uma longa luta abolicionista e intensa pressão sofrida de países como a Inglaterra, que, com a Revolução Industrial, buscavam ampliar seus mercados consumidores para vender os produtos industrializados. O Brasil também foi a última nação do continente americano a abolir a prática. Mas os negros libertos não tiveram uma reparação da história pela escravidão: sem renda ou moradia, não receberam educação formal e eram vistos e tratados como uma raça inferior e incapaz. Excluídos do mercado de trabalho e da vida social, milhares passaram a viver à margem da sociedade e permanecem até hoje em situação de desvantagem socioeconômica em relação aos brancos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística (IBGE), os negros são os mais afetados pelo desemprego e pela violência, os que têm os mais baixos salários e escolaridade e representam a maior parte da população carcerária. A relação entre cor da pele e condição socioeconômica também cria um ciclo vicioso perverso: devido ao preconceito, o negro tem menos oportunidades de estudo e, consequentemente, de ascensão no mercado de trabalho.
Preconceito e exclusão
Além da exclusão social, os negros são os que mais sofrem discriminação no Brasil, embora os índios também sejam vítimas de preconceito. Na esfera virtual, as discriminações se repetem. Ganharam grande repercussão os episódios que envolveram celebridades, como as manifestações de ódio em redes sociais e sites de artistas como Taís Araújo, Preta Gil e Negra Li. A legislação brasileira difere racismo (manifestação de preconceito contra toda a raça) de injúria racial (dirigida a uma pessoa ou grupo específico). O crime de injúria racial está previsto no Código Penal com pena de até três anos de prisão. Já o racismo é um crime inafiançável (que não prevê o pagamento de fiança) e também imprescritível (que não perde a validade) desde 1989. Mais de 20 anos depois, em 2010, foi sancionado o Estatuto da Igualdade Racial, um marco jurídico de combate à desigualdade e à discriminação por raça no país.
Mito da democracia racial
O racismo no Brasil tem características bem próprias. Como no país não ocorreu uma situação de segregação institucionalizada, assim como na África do Sul e nos EUA (nos estados sulistas, por volta de 1870 a 1950), difundiu-se aqui o “mito da democracia racial”. A expressão refere-se à ideia de que o preconceito e a discriminação devido à cor da pele não existem e que haveria uma valorização da nossa “mestiçagem” que neutralizaria a intolerância racial. Esse pensamento ainda hoje constitui um entrave para que a sociedade reconheça a existência do racismo no país. Dessa forma, é comum o preconceito contra a população negra se manifestar de modo velado, muitas vezes na forma de piadas e brincadeiras, mostrando um jeito muito peculiar e naturalizado de racismo.
Um exemplo foi o vazamento de um vídeo do jornalista William Waack, da Rede Globo, em novembro de 2017. Sem saber que estava sendo filmado, ele xinga um carro que estava buzinando na rua e diz que “é coisa de preto”. Acusado de racismo, Waack teve seu contrato rescindido e, posteriormente, desculpou-se em um artigo em que afirmou que “aquilo foi uma piada sem a menor intenção racista, dita em tom de brincadeira, num momento particular”. No Brasil, atualmente, permanece uma situação em que as pessoas já admitem haver a discriminação, mas negam o próprio preconceito. Foi o que comprovou uma pesquisa realizada em 2017 pela Editora Abril em parceria com a empresa MindMiner, publicada na revista Veja: 98% dos entrevistados reconheceram que há racismo no país, porém apenas 1% deles, pelas respostas dadas, foi classificado como “muito preconceituoso”. Por outro lado, 72% dos negros afirmaram já ter sofrido algum tipo de discriminação. O levantamento mostrou um paradoxo: um país com muito racismo, mas, supostamente, com poucos racistas.