Questão agrária: A estagnação da reforma agrária
O governo federal reduz o ritmo de assentamento de famílias no campo, e os conflitos por terra aumentam
O ano de 2015 foi marcado por um triste recorde: o país registrou o maior número de mortes no campo em 12 anos – foram 47, resultantes de mais de 771 conflitos entre trabalhadores rurais, policiais e milícias privadas de proprietários rurais. O quadro é preocupante, ainda mais se levarmos em conta a frequência dessas estatísticas. Nos últimos cinco anos, ocorreram mais de 4 mil conflitos, que resultaram em mais de 200 mortes. Segundo a organização não governamental Global Witness, entre 2012 e 2014 o Brasil ocupou o topo do ranking de violência no campo, à frente da Colômbia, das Filipinas e Honduras.
O aumento no número de mortos e de conflitos por disputa de terras em 2015 coincide com a estagnação da reforma agrária no governo de Dilma Roussef. Entre 2011 e 2015, ela assentou apenas 110 mil famílias. Para efeito de comparação, Lula assentou 136,4 mil famílias apenas em 2006. E Fernando Henrique Cardoso, 101 mil em 1998.
O governo Dilma argumentou que a prioridade, desde 2011, era melhorar a qualidade dos assentamentos já existentes, com programas de fomento à agricultura e programas de saneamento básico e de extensão do programa habitacional Minha Casa Minha Vida a essas populações. Em 2015, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável por conduzir a reforma agrária, afirmou que a ênfase estava em resolver questões judiciais para liberação de áreas que podem ser desapropriadas. As justificativas não convenceram os movimentos sociais, que acusaram o governo de fazer o jogo do agronegócio em detrimento da necessidade das populações mais carentes.
Em abril de 2016, às vésperas da votação de seu afastamento no Senado, Dilma anunciou a desapropriação de 21 áreas em 13 estados. No entanto, cinco dias após o anúncio, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que o Incra suspendesse a concessão de novos benefícios da reforma agrária, por encontrar indícios de irregularidades nos processos de 578 mil beneficiários.
Estrutura fundiária
O combustível da violência no campo vem da concentração de terras em mãos de poucos proprietários, uma realidade que perdura há séculos no Brasil. Do total de 520 milhões de hectares de solo aproveitável para a agropecuária, quase metade é ocupada por latifúndios, que representam pouco mais de 2% dos imóveis rurais do país (um hectare equivale a 10 mil metros quadrados, mais ou menos a medida de um campo de futebol). De outro lado, minifúndios e pequenas propriedades, que equivalem a mais de 90% dos imóveis, correspondem a menos de um terço da área total.
A distribuição das propriedades agrá- rias e seu tamanho definem o que se chama estrutura fundiária. As propriedades são classificadas em quatro categorias:
- Minifúndios, propriedades com até dez hectares;
- Pequenas propriedades, com área entre dez e cem hectares;
- Médias propriedades, com área de cem a mil hectares;
- Grandes propriedades ou latifúndios, com área acima de mil hectares.
A estrutura fundiária brasileira, de altíssima concentração de terras, é herança do Brasil Colônia, quando o território do país foi dividido pela Coroa portuguesa em capitanias hereditárias e sesmarias, grandes glebas destinadas a poucos eleitos. Com a instauração da República, um ano depois da abolição da escravatura, as terras permaneceram nas mãos de grandes proprietários. Nascia aí a figura dos coronéis, que mantinham grande poder político e influência baseados em suas extensas propriedades rurais. Foi apenas na segunda metade do século XX que a preocupação com a concentração de terras entrou para a pauta política brasileira, muito devido à mobilização de movimentos sociais voltados para a redistribuição de terras.
Um dos pilares da reforma agrária é a desapropriação de grandes terras improdutivas
Hoje, os latifúndios pertencem a grandes empresas, que constituem a agroindústria, ou agronegócio. São ocupados, no geral, por monoculturas de produtos destinados à exportação e à indústria. Com alto grau de mecanização e tecnologia, os latifúndios dependem cada vez menos de mão de obra – ou seja, geram pouco trabalho. É a agroindústria que garante a posição de liderança do país na exportação de commodities agrícolas empregadas como alimento ou matéria-prima, como soja, cana-de-açúcar e café. Já as pequenas propriedades destinam-se à agricultura familiar ou coletiva, em cooperativas; empregam pouca tecnologia no cultivo de produtos voltados basicamente para o mercado interno e a subsistência.
Reforma agrária
A reestruturação da organização fundiária é o que se chama reforma agrária – a definição de regras para a posse da terra que atendam ao princípio constitucional de que a terra deve cumprir uma função social. Isso significa dizer que o solo fértil deve gerar trabalho e renda, ou ser mantido como reserva ambiental. Grandes propriedades improdutivas devem ser desapropriadas e divididas em propriedades menores, distribuídas para famílias sem terra cultivá-las. É uma política de Estado – ou seja, que deve ser regularmente implementada, independentemente de quem assume o governo.
A reforma baseia-se em três pilares: desapropriação de terras improdutivas, assentamento de famílias de sem-terra e apoio ao pequeno agricultor, por meio de crédito para instalações e equipamentos, financiamento das safras (compra de sementes, adubos e defensivos agrícolas) e extensão rural (orientação técnica sobre métodos de criação e cultura e noções de comercialização). Para ser efetiva, a reforma exige, ainda, que o governo leve infraestrutura ao campo, como estradas, saneamento básico e eletricidade para as casas e equipamentos de beneficiamento.
Diversos países do mundo passaram por reformas agrárias, em diferentes épocas e seguindo diferentes orientações políticas e ideológicas. Na Roma do século II a.C., o tribuno Caio Graco ordenou a distribuição de terras entre pequenos agricultores. Ao final do século XVIII, a Revolução Francesa, que aboliu a servidão rural, levou a uma explosão de conflitos envolvendo as relações de trabalho no campo.
No século XX, alguns dos exemplos mais emblemáticos são o México, que, nos anos 1930, realizou uma das maiores reformas da história, ao assentar 3 milhões de lavradores em 70 milhões de hectares, e, ao final da II Guerra Mundial, o Japão, que promoveu o uso da terra por pequenos proprietários, como forma de fazer da agricultura um motor de desenvolvimento econômico.
O MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJÁS COMPLETA 20 ANOS
Há 20 anos, em 1996, ocorreu um dos maiores massacres relacionados a conflitos por terra: 19 sem-terra foram mortos pela Polícia Militar do Pará na região de Eldorado dos Carajás (PA) e muitos outros, mutilados. Até hoje, os camponeses acusam a polícia de levar do local diversos corpos, que jamais foram encontrados. O desenlace judicial sobre os militares participantes da carnificina mostra a impunidade que impera no campo. Do total de 154 policiais denunciados por assassinato pelo Ministério Público, até hoje apenas dois foram condenados por homicídio doloso (aquele no qual o assassino tem a intenção de matar). E até hoje o Pará é palco da maior parte de conflitos por terra no país. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, em 2015 o estado foi o terceiro em número de episódios de violência e o segundo em assassinatos.
Questão agrária no Brasil
No Brasil, as primeiras grandes mobilizações a favor da reforma agrária surgiram na década de 1950, com as Ligas Camponesas. Na década seguinte, ao mesmo tempo que reprimia as ligas, o governo do regime militar criou, em 1964, o Estatuto da Terra, que define os direitos e deveres de proprietários rurais e disciplina a ocupação, o uso e as relações fundiárias no país.
O estatuto estabelece as bases para uma reforma agrária e prevê o assentamento de famílias em três tipos de área:
- terras públicas, da União e de governos estaduais;
- fazendas improdutivas, que são propriedades privadas desapropriadas com indenização aos donos;
- terras públicas “griladas”, ou seja, ocupadas por grileiros, que reivindicam a posse por meio de falsificação de documentos oficiais.
O primeiro programa de reforma agrária foi estabelecido por decreto presidencial em 1966, mas não saiu do papel. Em 1970 é criado o Incra, até hoje responsável por executar o plano. Mas as ações do Incra àquela época visavam menos a redistribuir terras do que promover a colonização da Amazônia por famílias e empresas.
Ainda durante a ditadura militar, surgem organizações civis de luta pela reforma. Em 1975, a Igreja Católica funda a Pastoral da Terra (hoje Comissão Pastoral da Terra), para atuar entre os trabalhadores rurais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surge nos anos 1980, e se transforma na principal organização de mobilização de lavradores pelo assentamento no campo. A principal forma de atuação do MST é a ocupação de terras, principalmente aquelas consideradas improdutivas, de modo a pressionar o governo a desapropriá-las.
Em resposta ao MST, os grandes proprietários de terra criam, em 1985, a União Democrática Ruralista (UDR), para defender seus interesses. Atualmente, os grandes proprietários rurais compõem uma frente parlamentar no Congresso Nacional para defender seus interesses – a chamada bancada ruralista, que se tornou o principal instrumento político do grupo. Os grandes proprietários defendem medidas como financiamento rural mais barato e menos entraves ambientais para a ampliação de áreas de cultivo e criação, como forma de garantir a produtividade e, com isso, manter os produtos agrícolas como líderes na pauta de exportações brasileira.
A eliminação das desigualdades, que expulsa do campo e deixa na pobreza milhares de famílias, depende da implementação de uma reforma agrária consistente e efetiva. Mas para promovê-la é preciso alterar a estrutura de poder político e econômico. Daí a persistente oposição entre os grandes proprietários rurais, que se beneficiam do atual sistema, e os movimentos sociais, que pressionam por mudanças.
Questão agrária
CONCENTRAÇÃO DE TERRAS No Brasil, as grandes propriedades, que representam cerca de 2% do total de imóveis rurais, ocupam quase 50% da área própria para agropecuária. Minifúndios e pequenas propriedades, que correspondem a quase 91% dos imóveis, ficam com cerca de um terço. A origem da concentração fundiária nas mãos de poucos está no sistema de distribuição de grandes terras a poucos privilegiados, pela Coroa portuguesa, ainda no Brasil Colônia.
REFORMA AGRÁRIA É uma política de Estado de redistribuição de terras para agricultura e pecuária segundo o princípio de que a terra deve cumprir um papel social – gerar renda e trabalho, ou permanecer como reserva ambiental. A reforma envolve a desapropriação de terras improdutivas, o assentamento de famílias de sem-terra e suporte a elas, na forma de crédito rural, financiamento das safras, extensão rural e infraestrutura públicas. No Brasil, a reforma é implementada pelo Incra, criado em 1970.
RITMO DA REFORMA O número de desapropriações e assentamentos caiu drasticamente no governo de Dilma Roussef, depois de grande crescimento nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. Entre 2011 e 2015, Dilma assentou apenas 110 mil famílias – menos do que os assentamentos de Lula apenas em 2006. Em 2015, Dilma não realizou nenhuma desapropriação e assentou menos de 3 mil famílias.
MST E RURALISTAS O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado nos anos 1980, é a principal entidade de luta pela reforma agrária. Acompanhado da Comissão Pastoral da Terra, os sem-terra enfrentam a oposição dos grandes proprietários, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional.
VIOLÊNCIA NO CAMPO As centenas de conflitos por disputa de terra que ocorrem a cada ano deixam dezenas de mortos. O Brasil é listado como líder no ranking de violência no campo. Em 2015, o número de mortos foi o maior em 12 anos.