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Dossiê – Intolerância: os limites da liberdade de expressão

Quando o discurso de ódio extrapola o direito de se manifestar livremente

Quando o discurso de ódio extrapola o direito de se manifestar livremente

Em meio ao efervescente Carnaval de São Paulo em 2018, um fato destoou da animação. Por iniciativa do movimento Direita São Paulo, o bloco Porão do Dops pretendia desfilar nas ruas da cidade para “celebrar” o legado da ditadura militar. Um dos cartazes de divulgação do bloco exaltava a figura do coronel Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi e torturador durante o regime militar.

O Ministério Público (MP) entrou com uma liminar tentando impedir o desfile do bloco, alegando apologia à tortura. A juíza Daniela Conceição negou o pedido, sob a justificativa de que a proibição fere a liberdade de expressão. O MP recorreu e, às vésperas do desfile, veio a decisão do desembargador José Rubens Queiroz Gomes, para quem a manifestação do bloco configura, de fato, crime de apologia à tortura.

Em tempos de intolerância, a proibição do bloco é mais um episódio a instigar o debate sobre os limites da liberdade de expressão. Sem pretender fornecer uma resposta absoluta a essa longa discussão, recorremos a alguns fundamentos filosóficos que abordam a ideia da tolerância e os limites da liberdade individual.

A liberdade de expressão

A liberdade de expressão é o direito de qualquer um manifestar suas ideias livremente, sem interferência do governo ou da sociedade. Por isso, trata-se de um dos pilares das democracias e peça fundamental para o exercício da cidadania e da fiscalização do poder público.

Uma reflexão seminal sobre a liberdade de expressão está na obra Sobre a Liberdade, publicada em 1859 pelo filósofo utilitarista John Stuart Mill. Ferrenho defensor da liberdade individual, Mill argumenta que ao redor de cada indivíduo há uma área em que nem a sociedade nem o Estado estão autorizados a agir. É o que ele chama de self regarding area: “sobre si mesmo, seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano”. Mill elenca três argumentos em defesa da liberdade de expressão.

Argumento da falibilidade: quando o homem torna-se consciente de si como um ser limitado e pequeno (ou seja, humano), passível de ser iludido, ele compreende que muitas de suas opiniões podem estar equivocadas. Por isso, a única posição coerente com o bom senso é a tolerância; filha da incerteza e da dúvida, a tolerância seria parte da condição humana.

Argumento da parcela de verdade: mesmo que uma opinião contrária a nossa seja falsa, às vezes ela pode ser parcialmente verdadeira ou mostrar algumas fissuras de nossa argumentação.

Argumento do dogma: toda opinião não contestada, não discutida, torna-se um dogma, um preconceito, mesmo que seja verdadeira. Quando uma opinião verdadeira é contestada, ela é obrigada a justificar-se e, por isso, torna-se mais forte, mais racional e mais vigorosa. A liberdade de expressão, assim, é fundamental para entendermos o porquê de acreditarmos numa determinada opinião e nos livrarmos do fanatismo.

Restrições ao discurso de ódio

Para Mill, há um único motivo que pode levar a sociedade a interferir nessa liberdade: evitar o dano a outrem (harm to others). Esse dano a terceiros pode ser o dano privado, isto é, a outros indivíduos, ou o dano público, contra as instituições e o interesse público. O chamado “princípio do dano” é a única possibilidade de restrição à liberdade: “a liberdade do indivíduo deve ser, assim, limitada; ele não deve se tornar nocivo a outras pessoas”.

Ao trazer o pensamento de Mill para o atual contexto de intolerância, podemos afirmar que o autor se alinha com a tese de que a liberdade de expressão não pode se sobrepor à garantia da dignidade humana. Em termos gerais isso significa que o direito à livre manifestação não deve servir de salvo-conduto para que alguém possa incitar a violência ou expressar-se de forma preconceituosa, principalmente contra grupos historicamente vulneráveis – negros, homossexuais, mulheres, imigrantes, minorias religiosas.

A Constituição brasileira de 1988 garante a liberdade de expressão e proíbe a censura prévia, é fato. Mas há condições estabelecidas pelos Códigos Civil e Penal que determinam certos limites. A manifestação de ideias preconceituosas pode ser enquadrada como injúria, calúnia e difamação. Atualmente, grande parte das decisões judiciais segue alinhada ao pensamento de Mill. Um discurso de ódio, notadamente os que se configuram como ofensa ou humilhação a grupos identitários, costuma ser penalizado.

Mesmo com alguns parâmetros judiciais, estabelecer uma linha vermelha sobre o que pode ou não ser expressado é uma tarefa complexa. Essa sobreposição de valores tão caros à democracia – a livre manifestação do pensamento e a defesa da dignidade humana – nos coloca em um exercício permanente para o desenvolvimento da sociedade. A liberdade de expressão, lembra-nos o cientista político Felix Oppenheim, é uma liberdade social, uma vez que envolve mais de um ser humano. Consequentemente, os limites da liberdade de expressão são construídos socialmente, pela manifestação de grupos identitários, por cidadãos que manifestam ideias que desafiam os direitos humanos e por decisões judiciais que vão criando bases para uma jurisprudência sobre o tema. É a partir desse choque de valores que iremos construir a sociedade que queremos para o futuro.

RESUMO

CONCEITO E CAUSAS

Intolerância é a não aceitação das diferenças e a incapacidade de reconhecer uma opinião divergente. Manifestações de ódio têm crescido no Brasil e no mundo devido a fatores como a crise política e econômica e o fortalecimento do individualismo e da cultura do medo. A internet e as redes sociais também têm papel central na visibilidade e na repercussão dos episódios de intolerância.

RACISMO

A discriminação com base em características físicas, como a cor da pele, tem origem na escravidão e ainda hoje persiste nos países que adotaram esse sistema, como os EUA e o Brasil. Devido ao preconceito racial, os negros são os mais afetados pela violência, os que têm os mais baixos salários e escolaridade e representam a maior parte da população carcerária do país.

RELIGIÃO

Os seguidores das crenças de matriz africana, como umbanda e candomblé, são os principais alvos da intolerância religiosa no Brasil, fenômeno que tem relação direta com o racismo. Em algumas nações, a situação é ainda mais grave, quando as restrições à liberdade de religião partem do próprio governo (como em Mianmar, Índia e Arábia Saudita) ou de grupos religiosos extremistas, como o Estado Islâmico.

XENOFOBIA

A estagnação econômica, a crise dos refugiados e o temor do terrorismo acentuaram a aversão e o medo de pessoas de culturas diferentes (em geral, estrangeiros), em diversas regiões do mundo. Isso levou os EUA e alguns países da Europa a adotar um discurso nacionalista e conservador, e políticas anti-imigração, como a construção de muros para barrar a entrada de imigrantes. No Brasil, o aumento do número de refugiados é acompanhado pelo crescimento da xenofobia.

GÊNERO

Pelo menos uma pessoa LGBT é assassinada por dia no Brasil – o país é campeão mundial de homicídios de transgêneros. Essas pessoas também estão expostas ao preconceito e exclusão social. No mundo, a prática homossexual é considerada crime em mais de 70 países – em sete deles, como o Sudão e o Irã, é punida com pena de morte.

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