Interpretação de texto: Funções da linguagem
Para cada intenção uma função: conheça as principais funções da linguagem que estão ligadas aos objetivos de cada autor ao produzir sua mensagem
O texto abaixo é um artigo publicado no site da revista Carta Capital, em 17/2/2016. A autora, presidente da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, expõe seu ponto de vista sobre o aborto no contexto do aumento dos casos de microcefalia no país, relacionados à infecção por zika vírus.
Em seus argumentos, ela destaca a diferença entre o que o papa, chefe máximo da Igreja Católica, prega (solidariedade, compaixão e misericórdia) e o posicionamento dos setores tradicionais da hierarquia católica brasileira, contrários ao aborto. Embora o papa Francisco condene a interrupção da gravidez, ele chegou a defender métodos contraceptivos como um “mal menor” para combater a disseminação do zika vírus.
No desenvolvimento do texto estão presentes as funções da linguagem, que dizem respeito às intenções do autor ao produzir cada mensagem. Há construções objetivas e neutras, que são exemplos da função referencial. Ao mesmo tempo, procura-se influenciar o comportamento do leitor, o que é característico da função apelativa ou conativa. Também podemos observar exemplos das funções emotiva, poética e fática. Vale notar que os textos não apresentam uma única função da linguagem. Há sempre uma função que predomina, mas ela não é exclusiva.
Diante[1] da grave situação de saúde deflagrada no[2] País pela disseminação do zika vírus e a sua vinculação com o[2] aumento dos casos de microcefalia, as declarações públicas da hierarquia católica têm revelado, uma[2] vez mais, o caráter misógino da instituição.
Estamos no ano do jubileu. O papa Francisco declara um tempo de misericórdia na Igreja. Não é misericórdia o que tem demonstrado a hierarquia católica no Brasil. Sua palavra tem sido impiedosa, sem qualquer[3] comiseração pela morte física, psíquica e emocional de muitas mulheres.
Uma mulher grávida contaminada pelo zika vírus pode gestar uma criança com micro- cefalia ou outras possibilidades de má-formação[4]. Será justo obrigar essa mulher a levar sua gravidez adiante? Isso é ser cristão? Será que temos o direito de decidir pela vida de outras pessoas dessa maneira?[5]
A ciência não consegue diagnosticar a micro- cefalia nos primeiros meses da gestação. Esse é o angustiante drama que tem apavorado as mulheres brasileiras grávidas.
No âmbito jurídico, pelo benefício da dúvida, o réu não pode ser condenado até que se prove sua culpa.[6] Também no campo teológico, o chama- do Probabilismo, parte da mais antiga tradição doutrinária do acervo cristão, afirma que onde há dúvida deve haver liberdade.
Frente a uma decisão ética difícil, é correto que cada pessoa recorra à própria consciência para tomar sua decisão. Esse é o respeito à liberdade. A condenação ao aborto na Igreja Católica não é uma questão de dogma, mas sim[7] de disciplina moral.
Como pode a Igreja não compreender que o aborto, por seus aspectos morais, éticos e religiosos deve ser tratado na esfera privada de cada pessoa, e nunca como diretriz para imposições sociais?
Como é possível que os bispos não percebam que a proibição do aborto é seletiva e injusta socialmente, porque recai sobre as mulheres pobres e negras que vivem na periferia, sem as condições de saúde básicas, as mais sujeitas à epidemia do zika vírus?
Se é impossível à Igreja reconhecer que é direito das mulheres o controle sobre sua capacidade de gerar novos seres humanos, seja, ao menos, capaz de compaixão, virtude tão cara ao Cristianismo.[8]
Reunidos em recente discussão sobre o grave problema que assola o Brasil, outros líderes religiosos demonstraram respeito às mulheres e compreensão por seu sofrimento. Se não chegam a apoiar a ampliação da legislação relativa ao aborto, propõem o debate com a sociedade e têm a humildade de declarar a questão em aberto, reconhecendo que são as mulheres as que devem ser ouvidas pelas igrejas, como disse o Presidente da Aliança dos Batistas no Brasil, Joel Zeferino, ao afirmar: “Precisamos colocar a voz das mulheres nessa discussão[9], percebe?”[10].
Em excelente artigo publicado nestes dias, uma premiada jornalista brasileira, Eliane Brum, dá uma impressionante lição de lucidez[11]. Faria bem a muitos bispos ler seu texto, em sua integralidade. A certa altura, diz ela:
“Escutar é justamente debater. Aqueles que não querem debater aborto no Brasil precisam assumir que não se importam com a prisão e a morte de mulheres jovens e pobres, a maioria delas negras, já que estes são os fatos. Precisam assumir também que não se importam que o acesso ao aborto reproduza a desigualdade racial e social do Brasil, ao tornar-se acessível e seguro para quem pode pagar, e criminalizado e mortífero para quem não pode. Quem se importa debate os fatos. E escuta a posição do outro, mesmo que seja muito diferente da sua. Viver é mover-se”[12].
Seu convite é para que nos coloquemos na pele do outro[12]. Das outras, neste caso. Serão os bispos capazes disso? Será a Igreja Católica capaz de as- sumir verdadeiramente a sua missão evangelizadora que impõe ser o próprio espelho de seu anúncio?
[1] LOCUÇÃO PREPOSITIVA É o conjunto de duas ou mais palavras que têm o valor de uma preposição. Estabelece relação opositiva e encaminha o texto para as posturas distintas tomadas pelo papa e pela hierarquia católica.
[2] ARTIGO Os artigos definidos (o, a, os, as) são utilizados para designar seres e objetos específicos. Já os artigos indefinidos (um, uma, uns, umas) são empregados para indicar elementos genéricos. Repare que não é clara a identificação em “um tempo”. Por outro lado, há clareza de identificação em “o ano do jubileu” e “O papa”.
[3] JUÍZO DE VALOR E ADVÉRBIO O ADVÉRBIO de negação (sem) confere ao texto uma visão subjetiva e uma crítica à atitude do bispado, o que leva o leitor a tomar partido pela posição do papa e da articulista.
[4] FUNÇÃO REFERENCIAL Predomina em textos em que se exige neutralidade e objetividade. Nessa passagem, há informação, sem juízo de valor, sobre as consequências de uma gravidez em que a mãe esteja contaminada pelo zika vírus.
[5] PERGUNTA RETÓRICA E FUNÇÃO APELATIVA As perguntas induzem o interlocutor (o leitor) a dar a resposta esperada pelo emissor (o autor). Pretende-se fazê-lo aderir ao que foi proposto.
[6] DEFINIÇÃO Novo exemplo de função referencial aparece na explicação do conceito de culpabilidade.
[7] CONJUNÇÃO COORDENADA ADVERSATIVA A conjunção “mas” associada ao advérbio de afirmação “sim” confere ao conjunto valor adversativo. Se o “mas” estivesse associado a “também”, a ideia seria de adição
[8] FUNÇÃO APELATIVA Há um apelo a um valor (compaixão) que a Igreja não pode negar conforme suas próprias determinações. Essa exigência de posicionamento é típica da função apelativa.
[9] FUNÇÕES EMOTIVA E APELATIVA Na função emotiva, o uso da primeira pessoa do plural (precisamos) tem a intenção de estabelecer uma relação de cumplicidade com o leitor. Ao mesmo tempo, solicita-se uma adesão ao que foi pronunciado, característica da função apelativa.
[10] FUNÇÃO FÁTICA No final de sua fala, a pessoa citada (Joel Zeferino) emprega um termo (“percebe?”) que visa manter o canal de comunicação aberto para prolongar a conversa
[11] HIPÉRBOLE É a figura de linguagem que dá a ideia de aumento e exagero. “Lição de lucidez” já seria bem enfático. A inclusão do adjetivo “impressionante” confere ainda mais dramaticidade à expressão.
[12] FUNÇÃO POÉTICA As expressões empregadas em sentido figurado (“mover-se” como mudar de opinião, de ponto de vista; e “na pele do outro”, como no lugar do outro) são típicas da linguagem poética.
AS SEIS FUNÇÕES BÁSICAS DA LINGUAGEM
Função referencial ou denotativa
Transmite dados e informações de modo neutro e objetivo. É a linguagem típica dos textos jornalísticos, do discurso científico, dos contratos e relatórios. O uso do verbo costuma ser feito na terceira pessoa do singular.
Função expressiva ou emotiva
Manifesta uma expressão subjetiva, uma emoção ou ponto de vista. As interjeições e as reticências são sinais reveladores da função emotiva, assim como o uso da primeira pessoa. Ex: Nós te amamos!
Função apelativa ou conativa
Busca interferir no comportamento do leitor, convencê-lo de algo ou lhe dar ordens ou conselhos. Presente em manuais, livros didáticos e de autoajuda e textos publicitários. É comum o uso dos verbos no imperativo. Ex: Não perca esta promoção!
Função poética
Elabora a mensagem de modo criativo e explora a linguagem figurada. Está presente na poesia, em provérbios e em mensagens publicitárias.
Função fática
Inicia, prolonga ou encerra um contato. É aplicada em situações em que o mais importante não é a comunicação, mas sim o desejo de contato entre o emissor e o receptor. Predomina nos momentos iniciais e finais de qualquer mensagem ou conversa. Ex: sim, claro, sem dúvida.
Função metalinguística
Metalinguagem ocorre quando o emissor explica um código usando o próprio código. Por exemplo, uma poesia cujo tema e assunto seja poesia ou poeta. As gramáticas e os dicionários são exemplos de metalinguagem, pois são palavras explicando palavras. Ex: Oração é uma sentença com sentido completo organizada em torno de um verbo (para explicar a oração usamos uma oração).