Interpretação de texto: Os mecanismos de coesão e coerência
Compreensão imediata
Os mecanismos de coesão e coerência permitem que uma sequência de frases e de palavras se torne um texto e tenha sentido
Esta reportagem, publicada no jornal O Globo, em 7/2/2016, sobre os efeitos da recessão e da crise política na vida cotidiana da população, apresenta dados e análises que atestam como fatores sociais e econômicos são capazes de provocar angústia, insônia e depressão e levar as pessoas a procurar ajuda de especialistas em psicologia e psiquiatria.
A cobertura dada pela reportagem revela que as relações afetivas e de trabalho são pautadas pelas oscilações na situação econômica do país e provocam casos agudos de patologias psíquicas que só podem ser tratadas por medicamento que, ironicamente, custam caro.
Todo texto apresenta uma intencionalidade, mas o efeito desejado só é alcançado se as ideias estiverem devidamente organizadas – de maneira coerente – e se as palavras e frases estiverem bem articuladas – de modo coeso. Ao longo desta reportagem, podemos perceber diversos recursos que possibilitam o processo de articulação das palavras e das frases no texto (coesão), assim como a sequência de ideias, de modo a promover a continuidade de sentido (coerência). O emprego de palavras e de expressões com função remissiva, o uso de figuras de linguagem e de conectivos que promovem a articulação textual favorecem a compreensão do que se propõe comunicar no texto.
Um assunto se tornou predominante[1] nos consultórios psiquiátricos de uma clínica particular na Zona Sul e no programa de atendimento gratuito da área de saúde mental da Santa Casa da Misericórdia[2], no Centro. A crise econômica foi parar no divã, levada por profissionais de diferentes perfis[3]. São trabalhadores temendo perder o emprego ou já dispensados e executivos atormentados por ter de demitir centenas de pessoas[4] na recessão.
— Há uma angústia com a situação atual[5] e a falta de uma perspectiva de melhora na economia. Principalmente entre aqueles com predisposição, aparecem sintomas claros de depressão. Insônia, estresse e angústia[6] são comuns nesses pacientes — descreve a psiquiatra Analice Giglioti, diretora do Espaço Clif. — Aumentou muito também a procura por antidepressivos[7], mas[4] os médicos devem ter toda cautela ao receitar esses remédios.
Na clínica em Botafogo, cada consulta com um psiquiatra custa a partir de R$ 490. Entre os pacientes afetados pela crise, executivos são maioria[8]. Este também é o perfil mais comum entre as pessoas atendidas nas unidades de medicina preventiva da Med-Rio Check-Up. Segundo uma pesquisa da empresa com dados de seus pacientes, de 2014 a 2015, aumentaram de 8% para 11% os casos de depressão, de 21% para 25% os quadros de insônia, de 20% para 32% os relatos de ansiedade e de 55% para 70% os registros de estresse.
— O Brasil está fazendo mal à saúde dos brasileiros[8]. O ambiente hoje é rico em emoções negativas, como tristeza e medo. Isto[10] abre portas para problemas como gastrite, úlcera, hipertensão e até mesmo um acidente vascular cerebral (AVC) ou um infarto — comenta o médico Gilberto Ururahy, diretor da Med-Rio e autor do livro Emoções e saúde junto com o psiquiatra Eric Albert. Alimentação equilibrada e exercícios regulares são ótimas formas de evitar esses males. Sedentarismo só agrava os problemas causados pelo estresse.
‘Não durmo sem medicamento’
Diferentes estudos associam crises como aquelas que abateram a Europa e os EUA a partir de 2008 a elevações de casos de depressão emocional e até de suicídios. O uso de antidepressivos também pode apresentar curva ascendente. No Brasil, segundo dados compilados pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), o consumo de antidepressivos e tranquilizantes subiu 14% de novembro de 2014 a outubro de 2015[11], quando superou 1,5 bilhão de doses.
Vendidos sob apresentação de receita médica, esses remédios são caros e, portanto, fora do alcance da maior parte da população. Da mesma forma, consultas psiquiátricas representam um custo que pessoas com renda menor nem sempre conseguem arcar. Na Santa Casa de Misericórdia, porém, um serviço de atendimento gratuito recebe pacientes de baixa renda. Também lá, a inflação e o desemprego se tornaram o tópico principal das consultas.
— A angústia gerada pela possibilidade de não pagar o aluguel ou mesmo de não comprar comida para a família é gatilho para a depressão — explica a psiquiatra Fátima Vasconcelos, da Santa Casa. — Alguns pacientes abandonam o tratamento por falta de dinheiro até para as passagens de ônibus. É muito triste.
Já a advogada X., que pediu para não ser identificada, vive o impacto da crise na classe média[12]. Casada com um engenheiro que está sem salário há mais de um ano, ela desenvolveu insônia e depressão, mas abandonou as consultas com sua psiquiatra por não ter como pagar:
— Tenho rezado muito para me acalmar. Mas não consigo dormir sem medicamento.
[1] COESÃO E RETOMADA: O texto anuncia o assunto (crise econômica), que só é revelado na retomada do tema, na frase seguinte. A anunciação e a retomada garantem a unidade coesiva e a progressão textual.
[2] COESÃO POR INFERÊNCIA: A reportagem cita uma unidade de tratamento particular e outra pública. Com isso, reforça o caráter coesivo do texto, pois mostra que o problema afeta cidadãos de todas as classes sociais.
[3] COESÃO POR SUBSTITUIÇÃO: A expressão é retomada nas linhas seguintes com “trabalhadores” e “executivos” e reforça a abrangência da crise econômica.
[4] HIPÉRBOLE: É a figura de linguagem que exprime exagero. A escolha pelo numeral “centena” no lugar do pronome indefinido “muito/muitas”, por exemplo, define melhor a noção de multidão.
[5] COESÃO E SÍNTESE: “Situação atual” funciona como termo resumitivo. Indica a crise econômica e a angústia provocada por ela.
[6] COESÃO E PROGRESSÃO: A enumeração (“insônia, estresse e angústia”) mostra uma progressão e reforça o impacto da crise na vida das pessoas
[7] A COESÃO POR CONTIGUIDADE: O termo “antidepressivo”, palavra mais específica, designadora de medicamento, alude à palavra “remédio”, termo genérico que o retoma por contiguidade.
[8] COERÊNCIA A: reportagem informa o preço alto das consultas psiquiátricas. Em seguida, de forma coerente, retoma a ideia de que os executivos são, na maioria das vezes, os que mais procuraram por esse serviço.
[9] METONÍMIA E PERSONIFICAÇÃO: Há metonímia no emprego de um termo para significar outro (Brasil tomado como um todo para se referir à situação econômica). E personificação, ao atribuir vida a um ser inanimado (no caso, o país faz mal – pratica uma ação – aos brasileiros).
[10] COESÃO POR REMISSÃO: O pronome demonstrativo “isto” retoma a ideia anterior (faz remissão a um elemento próximo). Refere-se às emoções negativas, como tristeza e medo.
[11] COESÃO POR REITERAÇÃO: A força discursiva e coesiva está na repetição da ideia de aumento dos transtornos (depressão, insônia, ansiedade e estresse), mencionados anteriormente, e do uso de medicamentos, como antidepressivos e tranquilizantes.
[12] COESÃO INTERNA E PARAGRAFAÇÃO: A alusão ao sofrimento de camadas menos favorecidas da sociedade e da classe média reforça a ideia já apresentada no início do texto de que a depressão atinge classes distintas.
A IMPORTÂNCIA DA COERÊNCIA E OS ELEMENTOS COESIVOS
Um bom texto é aquele em que o leitor é conduzido à compreensão imediata. Para isso, ele deve ser coerente (apresentar nexo entre as ideias e sequências lógicas entre os termos e as frases) e coeso (interligar de modo claro esses elementos).
A organização de um texto está atrelada à disposição dos termos nos períodos, à escolha do vocabulário, às substituições e às referências feitas, à conexão estabelecida entre os termos e à sequência lógica e progressiva. A coesão se dá por referência (normalmente com o uso de pronomes e conectivos) e por sequência (em geral, marcadores temporais e verbos garantem essa continuidade lógica).
Confira alguns elementos coesivos (e veja os exemplos no texto ao lado):
Por remissão: os pronomes estabelecem relações remissivas sem que se faça repetição de termos.
Por substituição: um elemento substitui o outro sem prejuízo de sentido. Para isso, empregam-se sinônimos, por exemplo.
Por repetição ou reiteração: confere sentido de ênfase e garante a unidade textual.
Por contiguidade: estabelece unidade discursiva por apresentar elementos de um mesmo campo semântico.