Interpretação de texto: Como identificar a ironia em um texto
A ironia é a figura de linguagem que afirma o contrário do que parece dizer. Ela também pode se mostrar de modo mais sutil, no contexto, como no exemplo abaixo
Além das críticas sociais, outra das características mais atraentes e refinadas de Machado de Assis – um dos principais nomes do Realismo e da literatura brasileira e mundial – é sua ironia, que, embora chegue ao humor em certas situações, tem geralmente uma sutileza que só a faz perceptível a leitores de sensibilidade já treinada. Ela se associa àquilo que é classificado como o seu grande poder de “analista da alma humana”.
O artigo abaixo, do escritor Antonio Prata, publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 3 de novembro de 2013, é um exemplo típico desse tipo de ironia. Para percebê-la era preciso conhecer o pensamento do autor para concluir que ele só poderia “estar brincando”. O texto causou tamanha polêmica – várias pessoas acreditaram na seriedade de suas colocações e se posicionaram contrários ou favoráveis a elas – o que levou o autor a publicar na semana seguinte uma outra crônica (Abaixo a ironia) para esclarecer que seu artigo tinha, propositadamente, caráter irônico e caricaturesco. “Uma sátira é uma caricatura. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos outra, exagerando tais características (…) Achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas para que a sátira ficasse evidente”, disse Antonio Prata.
Guinada à Direita
Antonio Prata
Há uma década, escrevi um texto em que me definia como “meio intelectual, meio de esquerda”. Não me arrependo. Era jovem e ignorante,[1] vivia ainda enclausurado na primeira parte da célebre frase atribuída a Clemenceau, a Shaw e a Churchill, mas na verdade cunhada pelo próprio Senhor:[2] “Um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração; um homem que permaneça socialista aos 40 não tem cabeça”. Agora que me aproximo dos 40, os cabelos rareiam e arejam-se as ideias, percebo que é chegado o momento de trocar as sístoles pelas sinapses.[3]
Como todos sabem, vivemos num totalitarismo de esquerda.[4] A rubra súcia domina o governo, as universidades, a mídia, a cúpula da CBF e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, na Câmara. O pensamento que se queira libertário não pode ser outra coisa, portanto, senão reacionário. E quem há de negar que é preciso reagir? Quando terroristas, gays, índios, quilombolas, vândalos, maconheiros e aborteiros[5] tentam levar a nação para o abismo, ou os cidadãos de bem se unem, como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz, ou nos preparemos para a barbárie.
Se é que a barbárie já não começou... Veja as cotas, por exemplo. Após anos dessa boquinha descolada pelos negros nas universidades, o que aconteceu? O branco encontra-se escanteado. Para todo lado que se olhe, da direção das empresas aos volantes dos SUVs, das mesas do Fasano à primeira classe dos aviões, o que encontramos? Negros ricos e despreparados[6] caçoando da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral.
Antes que me acusem de racista, digo que meu problema não é com os negros, mas com os privilégios das “minorias”[7]. Vejam os índios, por exemplo. Não fosse por eles, seríamos uma potência agrícola. O Centro-Oeste produziria soja suficiente para a China fazer tofus do tamanho da Groenlândia, encheríamos nossos cofres e financiaríamos inúmeros estádios padrão Fifa, mas, como você sabe, esses ágrafos, apoiados pelo poderosíssimo
lobby dos antropólogos, transformaram toda nossa área cultivável numa enorme taba. Lá estão, agora, improdutivos e nus, catando piolho e tomando 51.[8]
Contra o poder desmesurado dado a negros, índios, gays e mulheres (as feias, inclusive), sem falar nos ex-pobres, que agora possuem dinheiro para avacalhar, com sua ignorância, a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites, nós, da direita, temos uma arma: o humor. A esquerda, contudo, sabe do poder libertário de uma piada de preto, de gorda, de baiano, por isso tenta nos calar com o cabresto do politicamente correto. Só não jogo a toalha e mudo de vez pro Texas[9] por acreditar que neste espaço, pelo menos, eu ainda posso lutar contra esses absurdos.
Peço perdão aos antigos leitores, desde já, se minha nova persona não lhes agradar, mas no pé que as coisas estão[10] é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente.[10] Do contrário, seguiremos dominados pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP[11], essa gentalha que, finalmente compreendi, é a culpada por sermos um dos países mais desiguais, mais injustos e violentos sobre a Terra. Me aguardem.[12]
[1] IRONIA E ALUSÃO: O cronista se refere a uma antiga crônica sua para desqualificar como pensava em seus tempos de juventude (“era jovem e ignorante”) e buscar adesão para sua suposta mudança ideológica.
[2] ARGUMENTO DE AUTORIDADE:O autor afirma que uma frase célebre foi, na verdade, cunhada por ninguém menos que Deus, com o objetivo de reforçar seus argumentos. Veja que o tom da frase nada tem de sagrado.
[3] IRONIA E METÁFORA: Segundo Prata, com a maturidade, passa-se a pensar mais com a razão (sinapses, associadas ao cérebro) do que com a emoção (sístoles, relacionadas ao coração). Ele ironiza adultos que pensam como jovens
[4] IRONIA E SARCASMO: O cronista diz que vivemos num regime totalitário (chefiado por um líder que se mantém no poder usando a força), o que, evidentemente, não é verdade. O sarcasmo também aparece na expressão “como todos sabem” – pois se não é realidade, ninguém poderia saber.
[5] IRONIA E VOCABULÁRIO: A seleção de vocábulos (maconheiros, aborteiros e, nas últimas linhas do texto, crioléu, bichas) revela o tom crítico e irônico do autor. Ele busca criar um personagem acentuadamente preconceituoso justamente para dar o tom irônico de seu texto e, assim, criticar os conservadores.
[6] IRONIA E GÍRIA: Segundo o autor, negros beneficiados pelas cotas nas universidades dominaram toda a sociedade e jogaram para escanteio os brancos, deixando-os desempregados e sem acesso ao Ensino Superior – o que, obviamente, não coaduna com a realidade. Repare o uso da gíria “boquinha” (algo fácil de se obter) para se referir às cotas
[7] IRONIA E ASPAS:Sabe-se que a população majoritária do Brasil é composta de pretos e pardos. Considerar que eles pertencem a uma minoria privilegiada, obviamente, caracteriza ironia, acentuada pelo emprego das aspas.
[8] IRONIA E ESPAÇO GEOGRÁFICO:O autor sugere que toda área cultivável no Brasil é ocupada por grupos indígenas ociosos, a quem chama de ágrafos (que não se expressam por sinais gráficos; veja o prefixo “a”, que indica negação). Argumento falso, é claro, já que o Brasil é uma potência agrícola e os índios foram praticamente dizimados.
[9] REFERÊNCIA:O cronista considera uma mudança para o Texas, estado norte-americano caracterizado por comportamento conservador.
[10] METÁFORA: “Pé que as coisas estão” significa situação. Cinco linhas acima, “jogar a toalha” é metáfora para desistir.
[11] INDICADORES DA IRONIA:O uso desses adjetivos também revelam a ironia. Pois um defensor “sério” dessas ideias dificilmente conclamaria, de forma tão explícita, as pessoas a terem posicionamentos grosseiros, raivosos e estridentes.
[12] IRONIA E IDEIA CONTRÁRIA: O autor culpa feministas e intelectuais por serem responsáveis pela desigualdade social vigente no país, dominado por negros, índios, ex-pobres etc. Obviamente, o autor deseja com esse manifesto sinalizar exatamente o contrário do que afirma.
OS CAMINHOS DA IRONIA
A ironia nega aquilo que foi afirmado, propondo o oposto do que na realidade se pensa ou se escreve. Um exemplo bem simples seria: Ana adora a sua sogra! (quando, na verdade, Ana a detesta). No texto em que predomina a ironia, o leitor deve abandonar o plano referencial concreto e real para entrar em um outro plano de sentido, que subverte o primeiro.
Há, no entanto, ironias mais finas, em que o discurso não trabalha nesse plano tão óbvio de contraste. Ocorre nas relações intertextuais, nas referências, ou ainda nas escolhas de palavras, como você pode conferir no texto ao lado.
A ironia está presente em textos diversos. Para se observar a ironia é preciso prestar bastante atenção na construção do discurso – a intenção do texto, o tipo de palavra escolhida, o humor etc. – e no repertório cultural e social que aparece ao longo do texto. O contexto é fundamental para a compreensão da ironia.