Migrações: Jornadas de desespero pelo mundo
O mundo vive a pior crise migratória desde a II Guerra Mundial. Conflitos, perseguições, a fome, a seca e desastres naturais expulsam dezenas de milhões de pessoas de suas casas e seus países
As nove pessoas que aparecem na imagem acima são refugiados: cinco sírios, três iraquianos e um afegão. Em meio ao risco permanente dos conflitos que devastam seus países, eles preferiram deixar lares e entes queridos para trás na tentativa de recomeçar uma nova vida no continente europeu.
Enquanto aguardavam permissão para cruzar a fronteira da Eslovênia com a Áustria, em mais uma etapa dessa longa jornada migratória, o grupo aceitou posar para o fotógrafo e mostrar seus celulares. Na memória do pequeno aparelho eles guardam imagens que ajudam a matar a saudade de quando viviam em paz, antes do caos que devastou suas vidas.
Nas fotos que os refugiados nos mostram estão filhos e esposas sorridentes, jardins bem-cuidados e cidades tranquilas. Mas tudo isso agora ficou para trás. Ao lançarem-se em perigosas travessias pelo Mar Mediterrâneo e árduas caminhadas em terras desconhecidas, eles sonham com uma chance de serem acolhidos em uma Europa que se mostra cada vez mais hostil à presença dos estrangeiros.
Essas histórias compõem um retrato da grave crise dos refugiados na Europa. Mas são apenas uma parte do drama da população total de refugiados no mundo. Apesar de esse fluxo ocorrer com intensidade do Oriente Médio para a Europa, existem refugiados espalhados por todo o planeta.
MIGRAÇÃO FORÇADA
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) reconhece que existem no mundo mais de 65,6 milhões de pessoas deslocadas à força, número que só encontra paralelo histórico na crise de refugiados provocada pela II Guerra Mundial (1939-1945).
Desse total, 40,3 milhões são deslocados internamente – pessoas que abandonam suas casas, mas permanecem em seus próprios países. Essa situação é muito comum na Síria, no Iraque e na Colômbia. Já os que se deslocam para outros países, os refugiados, somam 17,2 milhões – isso sem contar os 5,3 milhões de palestinos e seus descendentes que há anos vivem em territórios estrangeiros.
CONCEITOS
Migrante: é o termo genérico para qualquer pessoa que se desloque do país ou região em que nasceu.
Emigrante: é a pessoa que deixa seu local de nascimento para viver em outro país, estado ou região.
Imigrante: é o migrante que entra em determinado país ou região, para ali viver. imigrante ilegal é a pessoa que não é aceita oficialmente pelo governo do país em que chega.
Refugiado: é o migrante que deixa seu país forçado, fugindo de violência, conflitos, fomes, catástrofes naturais ou
violações dos direitos humanos. Asilado para as agências da ONU, é o refugiado aceito oficialmente pelo país ao qual pediu refúgio.
Deslocado internamente: é a pessoa que deixa sua casa, fugindo de perseguição, fome ou violência, mas não sai de seu país. a ACNUR considera apenas os deslocados por conflitos. outras organizações incluem os que se deslocam por desastres naturais.
Refugiado é uma categoria específica de migrante – a pessoa que se vê obrigada a deixar sua casa, rompendo laços culturais, familiares e sociais para tentar a vida em uma outra nação. Ao contrário de outros migrantes, que vão viver em outra cidade ou país por opção, o refugiado é forçado a se deslocar porque é ameaçado por conflitos armados, perseguição política, étnica ou religiosa, violência generalizada ou catástrofes naturais.
Pelas normas internacionais, refugiados não podem ser deportados de volta a seu local de origem e devem receber proteção no país a que chegam. Ter o status de refugiado não depende inicialmente da legislação de cada país, mas de normas internacionais estabelecidas em uma série de convenções e protocolos da ONU e ratificadas pela maioria dos países. Por essas normas, o refugiado deve receber proteção integral da nação que o recebe antes mesmo da conclusão do processo de regularização de sua situação, por meio da concessão de asilo. E a regra é válida mesmo em situações emergenciais, de grandes levas de pessoas que abandonam em massa seus países, como na atual crise migratória, quando a concessão do asilo é dificultada.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) estima que outros 2,8 milhões de pessoas ainda aguardam a conclusão do processo de pedido de asilo. E, por isso, não têm os direitos básicos garantidos.
UNIÃO EUROPEIA
Estão na Ásia os mais intensos fluxos de saída de refugiados da crise atual. Esse movimento deve-se, fundamentalmente, ao acirramento de conflitos armados no Oriente Médio na última década. Um dos principais catalisadores da atual crise migratória foi a guerra civil na Síria. O conflito, que começou em 2011, arrasou cidades inteiras do país, incluindo grandes centros urbanos, como Aleppo e Homs, e deixou a população à mercê de grupos extremistas, como o Estado Islâmico. Além da Síria, outros países, como Afeganistão e Iraque, passam por guerras que geram enormes levas de refugiados. O resultado desse caos é a fuga para outros países.
Boa parte desse contingente de refugiados procurou acolhimento nos países mais ricos da UE. O continente europeu abriga atualmente 13% do total mundial, o que representa cerca de 2,3 milhões de refugiados estrangeiros, e é a região com o maior número de pessoas que ainda aguardam asilo – 1,1 milhão.
As principais portas de entrada na UE são a Grécia e a Itália. Para chegar lá, milhares de migrantes desafiam os mares revoltos do Mediterrâneo. A travessia é perigosa, feita em embarcações precárias, geralmente superlotadas. Em 2016, mais de 5 mil pessoas perderam a vida durante as travessias, número recorde.
O auge da onda migratória para a UE ocorreu em 2015. Naquele ano, segundo a organização Anistia Internacional, o número de pedidos de asilo nas nações do mais rico grupo econômico do mundo praticamente dobrou de 2014 a 2015, subindo de 563 mil para quase 1,3 milhão. Pelo mar, chegaram à costa da Europa 1 milhão de refugiados. Pela rota dos Bálcãs, que une Turquia a países mais ao norte do continente europeu, chegou outro milhão vindo do Oriente Médio.
85% dos refugiados sírios estão abrigados em países como Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito
DRAMA NO LÍBANO
Embora a crise na Europa chame a atenção, o continente está longe de ser o principal destino dos refugiados. Da Ásia partem quase 60% do total de refugiados do mundo, e é nela que se abriga mais da metade desse total. Apenas a Turquia, o Paquistão e o Líbano recebem duas vezes mais refugiados do que todos os 28 países da União Europeia. Entre os dez principais destinos de refugiados, apenas a Alemanha pertence ao grupo econômico mais rico do mundo.
No caso específico dos refugiados sírios, segundo dados da Anistia Internacional, quase 90% deles estão concentrados em cinco países do Oriente Médio e do norte da África: Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito, somando 4,7 milhões de pessoas.
A situação no Líbano é especialmente dramática. Pobre, com um território cem vezes menor do que o da Europa e uma população de 5,8 milhões de habitantes, o Líbano acolhe cerca de 1 milhão de sírios – mais da metade deles, crianças. É o país de destino com a maior proporção de refugiados sobre a população nacional – para cada grupo de mil libaneses existem 172 refugiados.
Esses migrantes têm um enorme peso para o país. Além de não haver mercado de trabalho que absorva essa mão de obra extra, a infraestrutura libanesa de habitação, saneamento e serviços públicos em saúde e educação não tem capacidade de atender a esse excedente populacional. Como consequência, mais da metade dos refugiados sírios que chegaram nos últimos anos ao território libanês se mantém em acampamentos improvisados ou edifícios superlotados, em regiões extremamente carentes. Cerca de 70% desses refugiados vivem abaixo da linha de pobreza.
No Oriente Médio, também é representativo o caso específico dos refugiados palestinos, que não integram as estatísticas do ACNUR. São descendentes da população que foi forçada a se deslocar por causa dos conflitos relacionados à criação do Estado de Israel, em 1948. Essa população vive em territórios da Faixa de Gaza e Cisjordânia, mas também em países próximos, como Síria, Iraque e Líbano. Grande parte dos refugiados palestinos permanece durante anos, e até décadas, alojada em acampamentos planejados como temporários, enquanto reivindica o retorno a seu local de origem, hoje território israelense.
FOME E GUERRA NA ÁFRICA
A África é a segunda nos rankings de regiões que mais exportam e que mais acolhem refugiados. O motor desse triste entra e sai são os conflitos armados e a fome. No Sudão do Sul, por exemplo, a guerra civil, que teve início em 2013, forçou nos três anos seguintes 1,4 milhão de pessoas a se transferir para outros países.
Outro foco de grave crise é a região da bacia do Lago Chade, no Noroeste da África, que inclui Níger, Chade, Camarões e Nigéria. Nesses países, o Boko Haram, grupo extremista ligado ao Estado Islâmico, pretende instalar regimes islâmicos radicais e, para isso, ataca vilas e aldeias e comete saques, assassinatos e estupros.
Diante desse caos, a produção de alimentos foi prejudicada. Sem acesso a recursos para o cultivo agrícola e com a severa seca que atinge a região, 3,4 milhões de habitantes no entorno da bacia do Lago Chade enfrentam uma situação de insegurança alimentar severa. Como consequência da guerra promovida pelo Boko Haram e da fome, 2,6 milhões de pessoas que vivem nesses países foram obrigadas a deixar suas casas – número quase igual ao de sírios vivendo na Turquia.
Assim como ocorre na Ásia, na África a maior parte dos deslocamentos internacionais forçados se dá entre países vizinhos. Dos 17 milhões de desalojados africanos, cerca de 90% permanecem no continente, de acordo com a ONU. Ou seja, nesses casos, é o fator geográfico o mais determinante na escolha do destino.
Uma das razões para isso é o alto custo cobrado pelos traficantes de pessoas para chegar à Europa. Isso sem contar o alto risco dessas viagens, feitas em botes precários e superlotados. A urgência leva as pessoas a fugirem para uma nação mais próxima – ainda que tão pobre quanto seu país de origem, mas estável politicamente.
DESLOCAMENTOS INTERNOS
Refugiados deixam seus países e percorrem grandes distâncias, tentando se estabelecer em uma nação diferente. São muitos no mundo, é verdade. Mas a maior parte das pessoas que são forçadas a deixar suas casa são os deslocados internamente. Elas não saem do país, mas se mudam de cidade ou região por causa da violência ou de desastres naturais. Existem no mundo mais de 40 milhões de pessoas deslocadas internamente – quase 37 milhões delas devido a conflitos armados. E a maior parte está novamente na Ásia e na África. Juntos, os países desses dois continentes abrigam três quartos dos deslocados internamente por guerras.
Mas é no continente americano que se encontra o país com o maior número de deslocados internamente por conflitos – a Colômbia, com 7,4 milhões, metade do total de deslocados na Ásia. A dramática situação dos colombianos está relacionada ao longo histórico de conflitos com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN), que deixa um saldo de mais de 260 mil mortes e 46 mil desaparecidos desde 1964. Ao todo, estima-se que a violência tenha vitimado e afetado mais de 8 milhões de colombianos. O acordo firmado entre o governo e as Farc no final de 2016, ainda em implementação, criou expectativas de encerrar definitivamente o conflito.
A migração internacional vem crescendo nesta década e já alcança 243,7 milhões de pessoas
MIGRANTES ECONÔMICOS
Sempre é bom lembrar que os refugiados compõem apenas uma parte do total de migrantes internacionais. As estatísticas consolidadas mais atuais vêm da Organização das Nações Unidas (ONU) e referem-se a 2015. Segundo a ONU, se somarmos todos os migrantes internacionais, incluindo os refugiados, esse número alcança 243,7 milhões. E esse indicador cresce em ritmo acelerado: em apenas cinco anos, entre 2010 e 2015, a elevação foi de 10% – ante 28% do período 2000-2010.
Enquanto os refugiados fogem para escapar de violência, perseguições e conflitos, os migrantes por vontade própria têm motivação econômica – buscar melhores oportunidades de trabalho e, assim, melhorar a qualidade de vida. É por isso que a maioria dos migrantes está nos países desenvolvidos – 140,5 milhões. Desde meados do século XX parte do crescimento populacional desses países se deveu à entrada de estrangeiros.
A força econômica desses países atraiu, no decorrer do século XX, levas de imigrantes de países mais pobres, de onde partiram em busca de emprego.
Esse movimento não só estimulou o crescimento populacional dos países desenvolvidos, como contribuiu decisivamente para o seu avanço econômico. São conhecidos os fluxos de indianos e paquistaneses para o Reino Unido, de turcos para a Alemanha, de argelinos para a França e de mexicanos para os Estados Unidos (EUA).
Se num primeiro momento esse fluxo foi estimulado pelos governos locais, que necessitavam de mão de obra barata, com o passar do tempo as portas foram sendo fechadas a esses imigrantes. Ou, melhor, criaram-se restrições para tentar barrar esse fluxo, o que não impediu a chegada dos estrangeiros – só os tornaram imigrantes ilegais para as autoridades locais.
NOVOS RUMOS
A partir de 2010, contudo, um interessante fenômeno começou a ser observado: o grande movimento migratório para os países desenvolvidos ainda é intenso, mas as nações em desenvolvimento passaram a atrair cada vez mais estrangeiros. A crise econômica que abalou o mundo a partir de 2008 está na origem dessa situação do atual fluxo de migrantes e ainda deixa sequelas.
A economia estagnada forçou o fechamento de empresas e aumentou a taxa de desemprego nos países ricos. Esse cenário de instabilidade inibiu a chegada de possíveis imigrantes na Europa e nos EUA. Paralelamente, destinos anteriormente pouco importantes na rota das migrações passaram a atrair milhares de pessoas. Países produtores de petróleo no Golfo Pérsico, por exemplo, empregam muitos homens em áreas como construção civil. Com isso, nações como Emirados Árabes Unidos e Catar atraíram muitos estrangeiros. Até mesmo o Brasil passou a ser atraente para haitianos e africanos, que chegaram ao país atraídos pelas notícias de crescimento econômico e de possibilidade de emprego, no início desta década.
Para compreender melhor esse fenômeno, compare: entre 1990 e 2000, dos dez corredores de migração (de país de origem para país de destino) mais movimentados do mundo, quatro tinham como país de destino os EUA e dois, a Alemanha (países desenvolvidos). Já entre 2010 e 2015, há um único país desenvolvido como destino entre os maiores corredores, os EUA.
O corredor México-Estados Unidos, aliás, é outro indicador da mudança no perfil das migrações. Entre 1990 e 2000, cerca de 500 mil mexicanos transferiam-se para os Estados Unidos, em média, a cada ano. Até 2010, esse era o corredor de migração de mais intenso movimento no mundo. Hoje, ele ocupa a sexta posição, com apenas 100 mil migrantes mexicanos instalando-se nos EUA. Cedeu lugar ao corredor Síria-Turquia, com 300 mil migrantes por ano – muito graças ao grande fluxo de refugiados.
As recentes mudanças nos fluxos migratórios não significam que a questão deixou de ser um grande desafio para os países ricos. Muito pelo contrário. Na Europa e nos EUA, o convívio com os migrantes econômicos e com os refugiados é cada vez mais tenso e provoca reações de amplos setores da sociedade contra a presença de estrangeiros, muitas vezes descambando para o ódio e a xenofobia.
QUANDO O INFERNO SÃO OS OUTROS
Como diferenças culturais, disputa no mercado de trabalho e medo da violência exacerbam a xenofobia
Uma pesquisa de opinião realizada pelo Centro de Pesquisa Pew, em 2015, no auge da crise migratória na Europa, avaliou a aceitação de refugiados em dez países do Velho Continente. O resultado é sintomático do preconceito que afora cada vez mais na sociedade europeia:
• Em cinco países, mais de 50% temem perder o emprego ou benefícios sociais para os refugiados;
• Em oito, mais de 50% acreditam que a entrada de refugiados aumenta a probabilidade de atentados;
• E, em sete, menos de um terço crê que a diversidade cultural seja benéfica para a nação.
As estatísticas traduzem uma triste realidade, vivenciada na prática por episódios de violência e discursos de ódio: a xenofobia – aversão a pessoas estranhas a seu meio, no geral estrangeiras, com língua, costumes ou religiões diferentes. Essa intolerância floresce com maior intensidade na Europa e nos EUA, mas também ocorre com frequência em todas as partes do globo.
A xenofobia baseia-se em sentimento de superioridade de uma cultura sobre outra e na crença em estereótipos. Ela se manifesta mais intensamente em períodos de crises, como a que vivemos atualmente. Hoje, a xenofobia é impulsionada pela onda migratória, pela estagnação econômica que diversos países industrializados atravessam e pelo medo do terrorismo.
HISTÓRIA
A xenofobia é considerada por muitos estudiosos o mais antigo preconceito. Ainda na Grécia antiga, qualquer povo que não falasse o grego era considerado inculto, primitivo e incivilizado. Egípcios, fenícios e persas eram “bárbaros” – antônimo de cidadãos, uma elite de homens adultos nascidos na Grécia e filhos de gregos, grandes proprietários de terras, com boa condição econômica e social. Só estes tinham direitos políticos. Estrangeiros, lavradores, escravos, mulheres e crianças eram coisas. Os bárbaros, capturados em combates, eram transformados em escravos.
Mais recentemente, no século XX, o nazismo de Adolf Hitler pregava a superioridade da “raça ariana” – uma suposta linhagem dos godos e vândalos até os alemães modernos. Com o antissemitismo levado ao extremo, Hitler promoveu a perseguição aos judeus que culminou no holocausto, com mais de 6 milhões de mortos. Pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, na África do Sul, a política do apartheid institucionalizou, entre 1948 e 1990, a discriminação dos negros pelos brancos colonizadores, holandeses e ingleses.
NACIONALISMO
Nesta era da economia globalizada, na qual há livre circulação de capital, produtos e serviços, seria natural pensar que as migrações fossem favorecidas. Mas as fronteiras estão cada vez mais fechadas às pessoas. Passados quase dez anos da crise econômica de 2008, o mundo parece entrar num novo período da história: a desglobalização.
O comércio e os investimentos internacionais permanecem retraídos, e muitos países da União Europeia (UE) ainda estão com o mercado de trabalho estrangulado. A Grécia, um dos países mais afetados, tem uma taxa de desemprego acima de 23%, a maior do bloco. Na Espanha, essa taxa afeta quase 20% da força de trabalho, e na Itália, 14%. Além do desemprego, os rombos nas contas públicas levaram governos a aprovar reformas na previdência, aumentando a idade para aposentadoria e reduzindo benefícios sociais. Nessa situação de aperto, os estrangeiros são cada vez menos bem-vindos.
Frustradas, as sociedades começam a questionar os projetos de integração como a UE e voltam a olhar para si mesmas como nações individualizadas,com interesses próprios a defender. Floresce o nacionalismo – sentimento que valoriza a unidade da nação e sua identidade cultural, na língua, nos costumes, nas tradições e na religião. Quando exacerbado, esse nacionalismo enterra o ideal de um mundo em cooperação e passa a prevalecer a competição e as rivalidades nacionais.
POLÍTICAS ANTI-IMIGRATÓRIAS
Em compasso com o crescimento do nacionalismo, em diversos países europeus, a extrema direita vem obtendo expressivos resultados nas urnas, em uma ascensão relacionada à defesa que esses partidos fazem de políticas isolacionistas, protecionistas e contrárias à imigração. Rotular o estrangeiro como inimigo passou a ser uma estratégia cada vez mais usada para justificar os problemas internos e obter ganhos políticos.
Nesse sentido, o Brexit, a saída do Reino Unido da UE, foi a maior expressão política do sentimento anti-imigratório. Mas também é bastante sintomática a postura da Hungria. O primeiro-ministro conservador Viktor Orbán decidiu construir uma cerca na fronteira com a Sérvia e aprovou um conjunto de leis anti-imigratórias, que permite a deportação de imigrantes ilegais e a detenção de quem tentar entrar no país ilegalmente. Ao justificar a decisão, o seu governo anunciou que as ações visam a “defender a cultura da Hungria e da Europa”, em referência à chegada de refugiados, em sua maioria muçulmanos, a países cristãos – é a xenofobia explicitamente se convertendo em política de Estado.
E os países que têm adotado uma postura mais receptiva ao acolhimento dos refugiados, como a Alemanha, são alvo de fortes críticas. Por pressionar os parceiros da UE a aceitar um sistema de cotas pelo qual cada país teria que receber um número determinado de refugiados, o governo alemão sofreu fortes críticas de países do Leste Europeu, como Hungria, Romênia, República Tcheca e Eslovênia.
Não é só na Europa que a xenofobia é encampada pelos governantes. Nos Estados Unidos (EUA), o presidente Donald Trump foi eleito com uma plataforma explicitamente anti-imigratória, a começar pela promessa de alongar e reforçar o muro na fronteira com o México, numa tentativa de frear o fluxo de imigrantes ilegais. O decreto para a construção da barreira foi assinado logo nas primeiras semanas de seu mandato, embora ainda não esteja claro como esse projeto irá se concretizar.
Em outra ação claramente xenófoba, Trump assinou um decreto anti-imigração, que veta a entrada de cidadãos de seis países de maioria muçulmana: Síria, Líbia, Iêmen, Irã, Somália e Sudão. Quem chega dessas nações aos EUA só podem permanecer se comprovar alguma “relação autêntica” com uma pessoa ou entidade no país – ter um familiar ou ser contratado por uma empresa norte-americana, por exemplo. O governo dos EUA alegou razões de segurança para barrar pessoas que chegam de nações com “inclinações terroristas”.
O decreto havia sido suspenso por um tribunal, que considerou a proibição uma violação à Constituição por discriminar muçulmanos. Mas, em junho, a Suprema Corte do país liberou a proibição de forma temporária até ter uma deliberação definitiva sobre o caso.
ISLAMOFOBIA
O veto dos EUA à entrada de cidadãos de países de maioria muçulmana mostra como essa onda xenófoba tem um forte componente islamofóbico, que é o sentimento de repúdio ao islamismo. Desde o ataque ao World Trade Center, em 2001, pelo grupo fundamentalista islâmico Al Qaeda, os muçulmanos passaram a ser associados ao extremismo. Embora essas ações sejam exercidas por uma ínfima parcela de adeptos, que utilizam o nome da religião para obter ganhos políticos e territoriais, a repercussão dos atentados afeta negativamente a expressiva maioria de seguidores, que repudia os atos de violência.
Os mais recentes ataques terroristas na França e na Inglaterra, assumidos pelo grupo extremista Estado Islâmico, agravam ainda mais a islamofobia na Europa. Em um momento em que o continente recebe um grande fluxo de refugiados, a maioria vinda de países islâmicos, como a Síria, crescem os episódios de ódio e violência contra os adeptos da religião, que são estigmatizados como potenciais terroristas.
Nessa difícil convivência, o choque cultural entre os costumes islâmicos e a tradição ocidental é frequente. Na França, por exemplo, onde cerca de 7% da população é muçulmana, desde 2004 as estudantes muçulmanas são proibidas de vestir o hijab, o véu islâmico, nas escolas. A justificativa tem como base o preceito da separação entre Estado e religião, conhecido como secularismo ou laicidade – essa divisão é garantida por lei desde 1905 e é um dos pilares da república francesa. A laicidade das escolas também prevê que adeptos de outras religiões, como judeus, sikhs e cristãos, não utilizem sinais e vestes que manifestem ostensivamente a orientação religiosa. Mas o argumento do Estado secular se converteu em uma estratégia de defesa das tradições francesas contra a crescente influência do islamismo na sociedade.
Em 2010, outra decisão do governo francês acirrou a polêmica: a proibição da burca e do niqab, tipos de véu islâmico que cobrem integralmente o rosto da mulher, em espaços públicos franceses. Desta vez, a lei tinha como objetivo garantir a ordem pública e a segurança nacional. Segundo as autoridades, o uso da burca e do niqab dificulta a identificação das pessoas e a prevenção de atentados. A decisão aumentou o fosso entre os muçulmanos e a sociedade francesa e acentuou a estigmatização do islamismo.
A Hungria barrou refugiados sob a justificativa de “defender a cultura da Hungria e da Europa”
O BEM QUE O MIGRANTE FAZ
A atual onda xenófoba pode ser considerada uma reação de parte das sociedades em defesa de seus valores culturais e de seus privilégios econômicos. No entanto, muitas nações construíram a identidade a partir da fusão com outras culturas e costumes. E mais: diversos países devem o seu desenvolvimento econômico ao esforço do trabalhador imigrante. Segundo estudo do McKinsey Global Institute, os migrantes econômicos, que normalmente e deslocam para países mais desenvolvidos do que o de origem, produzem mais de 9% de toda a riqueza gerada no mundo. São quase 7 trilhões de dólares ao ano – 3 trilhões a mais do que se eles tivessem permanecido em sua terra. A maior parte dessa riqueza fica no país de destino.
Na Europa atual, ao contrário do que muitos xenófobos imaginam, o trabalhador imigrante será muito útil. As declinantes taxas de natalidade no continente levam ao envelhecimento populacional – o aumento na proporção de idosos sobre a de jovens. Como consequência, faltará mão de obra no futuro para sustentar o crescimento econômico. Até 2060, haverá no continente apenas dois trabalhadores para cada indivíduo acima de 65 anos, a metade da proporção atual, o que deve sobrecarregar o sistema previdenciário.
Além disso, nos países desenvolvidos há diversos postos de trabalho que, por exigir menor capacitação e pagar enormes salários, não conseguem ser preenchidos pelos cidadãos locais. Essas vagas, contudo, são muito valiosas para os migrantes econômicos e os refugiados. Isso sem falar que as ondas migratórias também acabam atraindo profissionais bem preparados e muitos talentosos, que rendem grandes dividendos. Os EUA, por exemplo, devem sua liderança tecnológica e científica à chegada de cientistas e pensadores europeus que fugiam do nazismo alemão na II Guerra Mundial. Um deles foi Albert Einstein.
A NOVA LEI DE MIGRAÇÃO NO BRASIL
Com o aumento da imigração no país, os estrangeiros agora têm novas regras que facilitam sua permanência
Em maio de 2017, uma pequena manifestação chamou a atenção de quem passava pela Avenida Paulista, em São Paulo. Um grupo de extrema direita fazia uma marcha contra a presença de imigrantes no país. A confusão se instalou quando uma bomba caseira estourou. Um palestino e um sírio foram presos, acusados de fazer o ataque. Os advogados de defesa, contudo, afirmam que a agressão partiu dos manifestantes e que as vítimas são seus clientes, alvos de um discurso de incitação ao ódio e à xenofobia.
O episódio reflete dois fatores importantes: o primeiro é que é cada vez maior o número de refugiados que chegam ao Brasil. O segundo mostra que o nosso país, à semelhança do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos (EUA), não está livre de episódios de xenofobia.
LEI DE MIGRAÇÃO
As manifestações foram motivadas pela nova Lei de Migração, sancionada pelo governo federal em maio. Ela substitui o Estatuto do Estrangeiro, criado em 1980, ainda no período da ditadura militar. Enquanto o estatuto priorizava a segurança nacional e os interesses socioeconômicos do Brasil e do trabalhador brasileiro, a nova legislação é pautada pela defesa dos direitos humanos, pelo repúdio à discriminação e pelo tratamento igualitário.
Pelas novas regras, o imigrante terá acesso a serviços públicos em saúde, educação, Justiça, ao mercado de trabalho e aos benefícios da Previdência, e poderá participar de associações políticas. A lei estipula, ainda, punição para traficantes de pessoas e criminaliza a entrada ilegal de estrangeiros em território nacional. E também proíbe a pronta deportação do imigrante ilegal detido nas fronteiras – agora ele tem direito a um defensor público.
A nova legislação coloca o Brasil na vanguarda do acolhimento a imigrantes, principalmente devido à instituição do visto humanitário. Pela lei brasileira, que segue convenções internacionais, podem ser consideradas refugiadas apenas pessoas que sofrem perseguição ou estão sujeitas a graves violações dos direitos humanos, como ocorrem em conflitos armados. Já as vítimas de desastres naturais e crises ambientais ou econômicas são categorias não contempladas no direito ao refúgio. Agora, com a nova legislação, este grupo pode solicitar o visto humanitário, que permite ao imigrante permanecer e trabalhar no país até regularizar sua situação.
IMIGRAÇÃO NO BRASIL
Apesar de ser considerado um dos países mais abertos à imigração internacional, o Brasil tem relativamente poucos estrangeiros residentes – menos de 1% da população. Mas tem crescido o número de pessoas que entram no país com a intenção de aqui viver. Em 2015, a Polícia Federal registrou a entrada de cerca de 117,7 mil estrangeiros – um número duas vezes e meia maior que o de 2006.
A maioria dos imigrantes brasileiros vem de países vizinhos, como Bolívia, Colômbia e Argentina. Mas há também asiáticos e africanos, da China, Senegal, Nigéria e Gana. Os haitianos, que vieram em massa ao Brasil após o terremoto que devastou a capital, Porto Príncipe, em 2010, lideram o ranking de chegada ao país em 2015 – foram 14,5 mil deles. Vivem hoje no Brasil 84 mil haitianos.
REFUGIADOS
O Brasil abriga cerca de 9,5 mil imigrantes admitidos como refugiados, de 82 nacionalidades. A onda migratória para o país, que teve início em 2010, aumentou muito o número de pedidos de refúgio. O ápice foi em 2014 e 2015, com 28 mil pedidos registrados em cada ano. Em 2016, o número caiu para 10,3 mil, situação atribuída, em parte, à concessão de vistos humanitários aos haitianos, que engavetou os pedidos de refúgio. Mas se deve, também, à crise brasileira, que leva os imigrantes a procurar outros países. A maioria dos pedidos de refúgio em 2016 foram feitos por venezuelanos, que fogem da grave crise humanitária, política e econômica de seu país. Apenas naquele ano, os imigrantes da Venezuela somaram 3,4 mil pedidos de refúgio. O número de venezuelanos que aqui entraram quintuplicou entre 2014 e 2016. Apenas entre janeiro e novembro de 2016, foram mais de 12 mil, que chegaram principalmente pela fronteira em Roraima.
MIGRAÇÕES INTERNAS
Outra importante questão para entender os aspectos demográficos brasileiros diz respeito às migrações internas –deslocamento de indivíduos de seu local de origem para outros estados ou regiões.
Esse movimento, que foi intenso na segunda metade do século XX, tem diminuído nas últimas décadas. Entre os principais motores dessa mudança estão o avanço da urbanização, o desenvolvimento econ��mico em outras regiões e a desconcentração industrial. A partir dos anos 1960, começou a ocupação maciça das regiões Centro-Oeste – incentivada pela inauguração de Brasília e, posteriormente, pelo agronegócio – e Norte, estimulada pela abertura de estradas como a Belém-Brasília e a criação da Zona Franca de Manaus.
Nos anos 1990, as políticas de isenção de impostos em diversos estados disseminou as indústrias pelo território brasileiro, proporcionando melhoria na infraestrutura de transportes, de telecomunicações e de energia elétrica, o que favoreceu a geração de empregos em locais menos desenvolvidos. À medida que ocorre uma distribuição mais equilibrada das ofertas de trabalho, a busca por outros lugares para morar tende a cair.
Entre 1995 e 2000, 3,4 milhões de pessoas trocaram a região onde nasceram por outra. Já entre 2005 e 2010, esse número baixou para 3 milhões. Assim, a migração entre regiões perde força frente a outros fluxos, como a migração intrarregional. Ela ocorre entre municípios de um mesmo estado ou ainda entre estados de uma mesma região, sobretudo em direção a cidades de médio porte. Esse processo é impulsionado, muitas vezes, por indústrias que migram para cidades menores. A migração entre os estados movimentou 4,6 milhões de pessoas entre 2005 e 2010.
Outro fenômeno recente é a chamada migração de retorno – o deslocamento de pessoas para sua região de origem, após ter migrado. É o que ocorreu na Região Nordeste a partir dos anos 1980, com a melhora da economia local. Na Região Metropolitana de São Paulo, 60% dos que deixaram a região entre 2000 e 2010 eram migrantes de retorno.
RESUMO – MIGRAÇÕES
CRISE MIGRATÓRIA: Mais de 65 milhões de pessoas são obrigadas a se deslocar de suas casas, para fugir de conflitos armados, fome ou perseguições. A crise migratória se agravou em 2011, principalmente devido ao acirramento de conflitos armados no Oriente Médio. Os maiores fluxos de refugiados ocorrem entre países asiáticos. Da Ásia partem quase 60% do total de refugiados do mundo, e é nesse mesmo continente que se abriga mais da metade deles. Mas grande número também procura países europeus. A chegada de milhões de refugiados levou diversos países da Europa a fechar as fronteiras, com muros.
MIGRAÇÃO: Imigrante é a pessoa que entra em um país ou uma região; emigrante, a que deixa um país ou uma região. Migrantes que chegam a outro país fugindo de situações de perigo são chamados refugiados. Em 2015 existiam no mundo mais de 243 milhões de migrantes. A maioria deles não é de refugiados, mas de migranteseconômicos, que deixam sua terra de origem em busca de melhores oportunidades de trabalho e de vida.
XENOFOBIA: É aversão ou medo de pessoas com costumes diferentes, no geral, estrangeiros. A crise migratória, somada às dificuldades da economia mundial, acirrou a intolerância em diversas regiões do mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, a xenofobia se materializa em políticas nacionalistas de extrema direita, que dificultam o acolhimento de refugiados.
BRASIL: Em 2015, entraram cerca de 118 mil imigrantes estrangeiros, duas vezes e meia mais do que dez anos antes. A maioria dos imigrantes vêm de países vizinhos. Mas há asiáticos e africanos. Haitianos e venezuelanos procuram o Brasil como refugiados. Em maio de 2017 foi sancionada uma nova lei da migração, que facilita a concessão de refúgio e admissão de migrantes no país. Já as migrações internas estão em tendência de queda no Brasil. Um dos motivos é a descentralização das indústrias, que favorece o mercado de trabalho e melhora as condições de vida em regiões antes muito pobres.