Poucos sistemas foram mais brutais no século 20 do que o apartheid da África do Sul. O regime autoritário imposto pelos descendentes dos colonos ingleses ainda é pouco estudado no Brasil, país que também é dividido pela desigualdade étnica – que leva, por sua vez, às disparidades sociais, econômicas e políticas.
Em “Canário” (2018), filme de Christiaan Olwagen disponível no Amazon Prime, somos levados à década de 1980, quando o ódio e a divisão formal entre brancos e os povos originários já não contava nem mesmo com o apoio da Rainha Elizabeth – que comanda a “Commonwealth”, a liga de nações de origem anglo-saxã que foram colônias inglesas –, embora tivesse respaldo da “Dama de Ferro” Margaret Thatcher, primeira ministra do Reino Unido.
A série inglesa “The Crown”, disponível na Netflix, mostra o embate da chefe de Estado e da chefe de governo em torno das sanções econômicas à África do Sul como forma de pressionar pelo fim do apartheid. A realidade, no entanto, é um pouco diferente daquilo que foi apresentado na ficção.
Já na história do filme, Johan (Schalk Bezuidenhout) é um garoto gay, filho de pais que lhe dão quase nenhuma atenção, além de serem religiosos e conservadores. O rapaz é selecionado para fazer parte do coral do exército sul-africano numa época em que o país estava em alto nível de tensão interna, como dissemos, mas também com seus vizinhos.
No exército, Johan convive, ao mesmo tempo, com a rígida disciplina e a moral conservadora e o afeto por Wolfgang (Hannes Otto), seu colega no coral. O envolvimento o torna, em contraposição, mais e mais refratário à sua identidade. Enquanto busca negar a si mesmo, Johan vê seu país se quebrar aos poucos. Seja por meio de uma mãe desesperada pelo fato de o filho estar na fronte de batalha para defender uma política de Estado com o qual ela (que é branca) não mais concorda, seja por meio de uma mulher que não realizou seus sonhos.
Falado em inglês e africâner – o idioma dos descendentes dos colonos europeus –, “Canário” é um drama sensível que trata, em suma, da aceitação de si mesmo, por meio de Johan, e do outro, por meio da crítica ao apartheid e à homofobia. Um dos pontos altos do filme são os clipes, que misturam a realidade com a fantasia de Johan e seus dilemas.
O apartheid instituído formalmente em 1948 cairia em 1993, já condenado pela ONU e sufocado por seus problemas econômicos. Isso não significa, no entanto, que os problemas tenham acabado.