‘Pobres Criaturas’ e a filosofia em Frankenstein
Escritores como Hugh Lacey, Hans Jonas e Jean-Jacques Rousseau teriam muito o que ensinar a Victor Frankenstein
Com onze indicações ao Oscars 2024, o filme “Pobres Criaturas”, do diretor Yorgos Lanthimos, estreia nos cinemas de todo o Brasil nesta quinta-feira (1). Coincidentemente, também é o dia em que completam-se exatos 173 anos da morte de Mary Shelley. O longa inspira-se no livro “Frankenstein“, a mais célebre obra de Shelley, para levantar alguns debates filosóficos e científicos. Assim como o ser criado pela autora inglesa, em “Pobres Criaturas”, uma jovem é trazida de volta à vida por um cientista maluco – e se vê obrigada a reaprender a humanidade e a sociedade em que vive.
Mas se ao falar em Frankenstein você pensa somente na criatura verde e cheia de parafusos, é preciso dar uns passos para trás antes de continuar. Frankenstein, na verdade, não tem nome — e nem é verde. Na história, o ser é uma criação de Victor Frankenstein, um jovem estudante de Medicina com disposição a experimentos não convencionais. Com inúmeras adaptações para o cinema, televisão e teatro, é com o sobrenome do seu criador, no entanto, que o “monstro”, de pele amarelada e cinzenta, ficou mais conhecido na cultura popular.
Assim como “Pobres Criaturas” faz em 2024, “Frankenstein” de Mary Shelley não se limitou às amarras do gênero do horror do início do século 19. Em ambas as obras, vemos questionamentos filosóficos acerca do papel da ciência, dos limites éticos da medicina, do sentido da vida e, principalmente, da rejeição da sociedade a tudo que é estranho ou diferente.
Neste texto, o GUIA DO ESTUDANTE embarca no mundo de Frankenstein e traz as possibilidades de discussão da obra através dos filósofos Rousseau, Hans Jonas e Hugh Lacey. Pode acreditar: o livro é um prato cheio de repertórios para a redação e o vestibular!
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Mary Shelley e a criação de Frankenstein
Reconhecido mundialmente como o monstro verde e agressivo, a criação da autora vai muito além do horror como gênero. Publicado pela primeira com o título “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno”, em 1818, o livro só foi assinado pela autora em 1823.
Mary Shelley (1797-1851) era filha de dois intelectuais. Sua mãe, Mary Wollstonecraft, foi considerada uma das primeiras feministas modernas. Seu pai, William Godwin, tinha estudos voltados à política. Shelley deixou a família para se casar com o poeta Percy Bisshe, com quem teve três filhos. Nenhum dos filhos sobreviveu à infância, e todos morreram quando ainda eram bebês. Logo depois foi o marido. Aos vinte e quatro anos, Mary já era viúva.
Toda a obra da autora é regada pela sua própria vivência – até mesmo “Frankenstein”, que escreveu aos dezoito anos. O livro nasceu de um encontro da autora com Lorde Byron e outros amigos, onde Byron, em um dia chuvoso, sugeriu que cada um escrevesse um conto de terror.
O contexto histórico onde a obra foi escrita também tem grande peso na narrativa. Era um momento de busca por novos conhecimentos e a razão era um instrumento inquestionável para o progresso. A indústria vivia um momento de profunda revolução e parecia não haver limites para as descobertas da ciência. Vale dar uma olhada na corrente filosófica do Positivismo, desenvolvida por Auguste Comte.
Considerando tudo isso, Mary Shelley se inspirou nas histórias de terror da época e em doutrinas que discutiam ainda a origem da vida, como o Darwinismo. A criatura de Frankenstein, em si, foi inspirada nos trabalhos do cientista Luigi Galvani, que conduziu experiências no século 18 para reanimar animais dissecados usando a eletricidade.
A obra abre o debate filosófico a partir da relação entre criador e criatura. Usando da ficção científica para lidar com as consequências da invenção do jovem médico, reflete sobre os problemas sociais e morais da época – que ainda se mostram tão atuais. Ao longo do livro, a autora convida o leitor a refletir sobre a ciência e, sobretudo, o seu papel ambíguo entre a salvação e a danação.
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A história de Frankenstein
“Talvez se pudesse reanimar um cadáver; as correntes galvânicas tinham dado sinal disso; talvez se pudesse fabricar as partes componentes de uma criatura, juntá-las e animá-las com o calor da vida.”
“Frankenstein, ou o Prometeu Moderno” é um livro epistolar, ou seja, escrito em forma de cartas. As cartas são trocadas entre o capitão Robert Walton e sua irmã Margaret Walton Saville. O marinheiro conheceu tanto o criador, Victor Frankenstein, quanto a sua criatura.
Logo no início da narrativa o marinheiro avista, como ele conta à irmã, “um ser de aparência humana, mas de estatura gigantesca” em um trenó puxado por cães. Os marinheiros, que estavam em busca do Polo Norte, se espantam por achar que ainda não tinham encontrado terra firme. Então, no dia seguinte, são apresentados ao Victor Frankenstein, que também estava à deriva no mar de gelo.
Victor é um estudante de Medicina e cientista que acredita ser capaz de criar vida a partir da junção entre eletricidade e partes separadas de um corpo humano. No encontro, começa a narrar sua história para o capitão, da infância até o momento em que deu vida à criatura e se viu aterrorizado pelo que criou – um sentimento tão forte que resultou no abandono, largando sua criação sozinha no mundo.
Mais tarde na narrativa, Robert conhece a criatura de Victor e, apesar dos alertas do médico, não rejeita o “monstro”.
A ficção científica encontra a mitologia grega
O livro é considerado o primeiro romance de ficção científica escrito no mundo. O gênero, por excelência, debate o surgimento de novas tecnologias e os novos mundos criados por elas.
É comum que duas ideias sejam contrapostas quando se trata dessas obras: a salvação e a danação pela ciência. Um outro debate é sobre os limites que nunca devem ser ultrapassados, e que podem colocar em risco toda a humanidade. Não é a toa que o livro original de Shelley levasse no título o complemento “Prometeu Moderno”.
Prometeu é um antigo mito criado pelo poeta grego Hesíodo, que conta que foi dada a tarefa de criar os homens e os animais aos irmãos titãs Prometeu e Epitemeu. Epimeteu fazia as criações enquanto Prometeu observava seu trabalho. No momento da criação do homem, Epimeteu percebeu que tinha gasto todos seus recursos, então o homem deveria ser construído apenas de barro. O homem seria, portanto, incompleto e inferior.
Buscando sanar a lacuna, Prometeu rouba o fogo dos deuses e dá aos homens, que ficam então superiores aos animais por controlarem elemento tão importante quanto esse, que os dota de inteligência. Como castigo, Zeus condena Prometeu a viver acorrentado a uma rocha, onde todos os dias um corvo devoraria seu fígado.
No livro, Victor Frankenstein é como Prometeu, que sofre a danação por criar a vida, um trabalho dos deuses. O castigo de Victor se dá pela sua própria criatura, que mata o melhor amigo e a noiva do cientista.
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A obra de Mary Shelley abre debates sobre como lidar com inovações científicas, o uso da linguagem e a responsabilidade moral com a futura geração. Por tudo isso, é possível analisá-la a partir de alguns filósofos como Hugh Lacey, Hans Jonas e Jean-Jacques Rousseau.
Hugh Lacey
O filósofo Hugh Lacey, que pesquisou e lecionou por décadas na Swarthmore College, convida a pensar em como lidar com as inovações científicas, considerando seus riscos. É dele o princípio da precaução, segundo o qual uma atividade científica não pode causar dano algum, e cabe ao próprio cientista tomar as medidas cabíveis para evitar isso.
No artigo “Frankenstein e a responsabilidade do cientista: um diálogo entre a ficção e a filosofia da ciência”, Carolina Amaral da Silva aponta a relação entre o princípio de Hugh Lacey e a obra de Shelley.
“A pesquisa científica descolada e despreocupada com a sociedade é errônea porque é limitada, tem apenas um ponto de vista antidemocrático, e é de responsabilidade do cientista arcar e pensar nas consequências de suas estratégias, também de responsabilidade dele analisar segundo critérios científicos seguros e plurais os efeitos de suas novas criações. Esse seria o conselho que Hugh Lacey daria momentos antes de Victor Frankenstein iniciar seu grande projeto”.
No livro, após seu experimento, o médico foge, deixando para trás uma criatura confusa que não consegue se comunicar. Com o passar da história, o monstro começa a tomar consciência de si e reflete que não escolheu existir. A partir disso, passa a questionar a própria existência.
Patricia MacCormack, professora de Filosofia da Universidade Anglia Ruskin, no Reino Unido, e autora de estudos sobre terror, diz que a criatura lida com as mais fundamentais questões humanas. “É a ideia de perguntar ao seu criador qual é seu propósito. Por que estamos aqui? O que podemos fazer?”, analisa em entrevista à BBC News.
Hans Jonas
“O homem é o único ser vivente que pode assumir responsabilidade diante do que faz, e com esse ‘pode’ já é de fato responsável”, afirma o filósofo alemão Hans Jonas, famoso por sua obra O Princípio Responsabilidade. O pensador se preocupou com o legado da sociedade para as gerações futuras e fez uma crítica à ética que não se preocupa com a tecnologia e com os efeitos que ela pode causar aos que virão.
“Esse momento esta em construção agora, Hans Jonas nos atenta para o fato de não podermos negar que nossas ações nessa era tecnológica determinarão como será a vida das próximas gerações”, afirma Carolina Amaral em seu artigo.
Victor Frankenstein não estava pensando no futuro quando deu vida à sua criatura. Para completar, mais tarde ele o abandona, ainda não pensando nas consequências para outros seres humanos e para sua própria criação. É sabido que mesmo após a morte do médico, a criatura continuou livre e tentando viver no mundo que o abomina.
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Jean-Jacques Rousseau
É possível ainda comparar as ideias do famoso filósofo Jean-Jacques Rousseau, em o “Ensaio sobre a origem das línguas”, com a narrativa de Mary Shelley.
“Rousseau sugere que somente a simpatia, somente a percepção da semelhança revela o que um homem tem em comum com os outros homens, e permite que um reconheça os outros como seu semelhante e não como monstros, gigantes ou estranhos”, analisa a professora de literatura comparada Cristina Maria Teixeira Martinho, no artigo “Sonhos de um monstro solitário”.
No livro, a criatura é o único humanoide incapaz de se comunicar na história até se deparar com uma cabana onde mora uma família. Esta família, tão exilada da sociedade quanto o monstro, é responsável indiretamente por ensiná-lo a ler e se comunicar.
A criatura observa a família por um buraco na parede e apreende noções sobre os relacionamentos familiares entre as conversas do pai cego De Lacey, a filha Agatha, o filho Felix e a noiva Safie. A noiva, assim como a criatura, também não consegue se comunicar porque toda a família fala francês. A criatura começa a falar e a pensar através das instruções que Félix e Agatha passam a Safie.
Toda a sensibilidade adquirida pela criatura desaparece quando a família observada foge de medo. O monstro permanece então solitário, sem entender porque todos fogem, até chegar à beira de um riacho onde observa seu rosto e enfim compreende sua diferença. O “nobre selvagem”, de Rousseau, uma figura popular, com sensibilidade espontânea, facilmente corrompida pelo homem civilizado, é a inspiração da autora.
Para completar, uma curiosidade: Victor Frankenstein é da mesma cidade de Rousseau.
FRANKENSTEIN, OU O PROMETEU MODERNO
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