Imagine buscar conselhos sobre os mais variados dilemas da vida moderna com um autor falecido há mais de 400 anos? Esta é a proposta do livro “Pergunte a Shakespeare“, do italiano Cesare Catà, lançado pela editora Leya. Para ele, que é doutor em filosofia do Renascimento, todos somos algum tipo de personagem shakespeariano, e não há problema que estejamos passando que o dramaturgo mais famoso do mundo já não tenha escrito sobre. Curioso, não?
A inspiração do livro vem dos oráculos da Antiguidade. Eles eram locais sagrados onde as pessoas iam para consultar entidades divinas a respeito de orientações ou conselhos. “Hamlet“, “Romeu e Julieta“, “A Megera Domada“, “Sonho de uma noite de verão” e outras peças seriam, para o autor, como estes oráculos. A universalidade e atemporalidade das experiências escritas pelo dramaturgo serviriam como orientação de vida, bastando um olhar mais interpretativo das obras.
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“Existe uma arte muito antiga, secreta, conhecida pelo nome de ‘bibliomancia'”, escreve o autor no prólogo. “Trata-se da prática mágica de buscar soluções para os nossos problemas cotidianos consultando livros que consideramos sagrados, inspirados por Deus ou iluminados por um poder profético.” “Teogonia“, de Hesíodo, o “Livro das mutações“, os versos de Virgílio, e até mesmo a Bíblia seriam exemplos da atividade bibliomântica.
“William Shakespeare, quem quer que tenha sido, é mais do que um autor. Seus dramas – esses roteiros escritos entre os séculos XVI e XVII para que um grupo de atores homens os encenasse num teatro de Londres e o público pagasse para vê-los – contam, de maneira quase sobrenatural, aquilo que somos. É como se os textos shakesperianos contivessem em seus meandros poéticos a nossa própria essência, o nosso sentir, a nossa vida exemplificada em histórias.”
Catà defende que os personagens de Shakespeare transcendem as meras funções narrativas: são arquétipos da existência humana. É como se, ao ser leitor ou espectador de cada um deles, nos tornássemos capazes de exprimir, descrever, e explorar a nossa própria identidade a partir das histórias. “Se ficamos loucos por amor, somos Romeu (ou Julieta); se encontramos o amor quando menos esperamos, somos Beatriz (ou Benedito); se perdemos as estribeiras de ansiedade, somos Otelo; se deixamos a razão de lado em busca da verdade, somos Hamlet”.
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Haveria dessa forma um certo reconforto em saber que, por maior que um problema possa parecer, o Bardo inglês (nome pelo qual Shakespeare também é conhecido) já escreveu sobre ele, séculos e séculos atrás. Catà seleciona dez das principais obras shakesperianas para guiar os capítulos antológicos do livro – que ele insiste: não é de autoajuda. As respostas para os dilemas estariam nas próprias representações dos personagens, que personificam questões comuns a qualquer ser humano. Separamos aqui a ideia por trás de três dos que mais se encaixam nos dramas e dilemas de estudantes e vestibulandos.
Se tudo vai mal, você precisa de “Sonho de uma noite de verão”
Sabe aqueles dias em que parece que tudo vai mal? Você pisou em um chiclete na rua, tirou uma nota baixa na prova que estudou, derramou suco de uva na roupa, pagou caro em uma comida ruim… Os exemplos são infinitos, mas fato é: todo mundo já passou por um dia assim. Não são tragédias, mas, sim, pequenos-grandes problemas. Para Shakespeare, tudo seria culpa dos duendes. No caso de “Sonho de uma noite de verão”, de Puck, o duende atrapalhado e travesso.
É claro que, na vida real, é difícil se contentar afirmando para si mesmo que as coisas estão dando errado porque pequenas criaturas mágicas estão tirando com a sua cara. Mas, acredite ou não, a lógica por trás disso pode te libertar de algumas chateações. Catà expõe um raciocínio bem coerente.
Em “Sonho de uma noite de verão”, dois casais estão apaixonados pelos parceiros “errados”, ou pelo menos, que não deveriam. Ao irem para o bosque que cerca a cidade, os quatro são vítimas das peripécias do rei das fadas, Oberon, e do seu servo Puck. O duende, na tentativa de enfeitiçar os jovens a amarem quem supostamente deveriam a amar, se confunde e cria uma confusão ainda maior, misturando os casais.
No fim, tudo dá certo e os casais terminam amando quem realmente amavam. As artimanhas cumpriram quase que propósito nenhum, a não ser o próprio divertimento do duende ao ver os casais trocados. No folclore, essas criaturas são famosas justamente por isso: causar na vida dos humanos. É como quando não encontramos as chaves de casa, chamamos o namorado pelo nome do ex, ou caímos em público. Os duendes, que não necessariamente são maus, mas se divertem com a nossa frustração perante esses pequenos infortúnios.
No fim da peça, quando tudo já deu certo, Puck encerra a obra dizendo que, para quem não gostou da história, basta imaginar que tudo não passou de um sonho. “O duende shakesperiano está dando voz aqui a um princípio bem preciso, central na visão de mundo de Shakespeare: se formos capazes de ver, à luz desta justaposição entre teatro e existência, cada coisa real na sua fundamental irrealidade, todos os fatos da vida serão redimensionados em sua importância”, escreve o autor.
Parece complicado, mas não é. Ao encararmos que as coisas vão mal porque os duendes estão brincando conosco, estamos, na verdade, nos aproximando de uma visão budista que prega o “desapego de todas as coisas, que, em sua transitoriedade, provocam sofrimento”. Catà reforça que “só com a consciência de que a realidade é uma ilusão é possível escapar do sofrimento inerente à vida”.
Segundo o folclore, os duendes só não mexem com aqueles que consideram gentis. E, como gentileza, não devemos entender educação ou boas ações em nome de uma recompensa (eles não ligam para etiqueta ou meritocracia), mas sim a “atitude positiva diante da realidade baseada no desapego das coisas”. Portanto, dizer que os duendes não costumam pregar peças às pessoas gentis significa dizer que “as pessoas gentis ficam menos incomodadas quando algo não sai de acordo com a vontade delas”.
Na dúvida, culpe o Puck e dê menos importância aos pequenos contratempos do dia a dia.
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Se sofre de ansiedade, você precisa de “Otelo”
Ansiedade: o medo de um fato que, apenas por ser possível, se torna real. Como afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, na ansiedade, é como se temêssemos o nada. E é a ansiedade, esse “nada” paralisante, que define o fim trágico de “Otelo”, descrito por muitos como a tragédia do ciúme, mas batizado como a tragédia da ansiedade por Catà. Assim como eu e você, Otelo é um homem ansioso. É alguém cuja mente é atraída por medos invisíveis.
Na peça que leva o seu nome, somos apresentados a quatro grandes personagens, sendo os três primeiros os principais: Otelo, Desdêmona, Iago e Cassio. O protagonista é descrito como um homem forte, viril, e que, ao que tudo indica, tem a aparência de um homem africano ou do Oriente Médio. Característica esta que lhe rende o apelido de Mouro, como é conhecido por toda Veneza. Mouro é general do exército e está perdidamente apaixonado por Desdêmona – linda e nobre donzela que lhe corresponde o sentimento.
Esta história de amor que ultrapassa classes e raças é interceptada pelo melhor amigo de Otelo, Iago – o honesto Iago –, que, de honesto, não tem nada. Veja bem: Iago não ama Desdêmona, não se trata de um triângulo amoroso. Seria, na verdade, impossível Iago amar alguém além de si mesmo: mais que qualquer outro personagem de Shakespeare, Iago é puro ódio. Iago odeia Otelo por, mesmo sendo um estrangeiro negro, ele ocupar o cargo de general, o odeia por preferido Cassio como tenente no lugar dele.
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Odeia Otelo por ele ser justo e bom, mesmo o mundo sendo tão cruel e preconceituoso com ele. E onde entra a ansiedade em tudo isso? Como um verdadeiro bruxo linguístico, Iago inicia a única batalha que tem coragem de travar contra Otelo: a das palavras. A partir de uma série de mentiras, o alferes começa a envenenar a cabeça de Otelo a respeito de uma falsa traição de sua esposa Desdêmona com o tenente Cassio.
Comendo pelas beiradas, vai lentamente estimulando os pontos mais sensíveis de Otelo. Ainda que Desdêmona não demonstre um pingo sequer de deslealdade ao marido, se torna cada dia mais impossível para o general silenciar os pensamentos e acreditar na fidelidade da esposa. O romance, sempre mal visto pela cidade, começa a parecer inverossímil para o general, que passa a desacreditar no sentimento que a mulher nutre por ele.
Uma triste armadilha que qualquer mente ansiosa reconhece: a dificuldade de não reconhecer mais o verdadeiro do falso. Embebido e cego pelas mentiras de Iago, comete o maior crime de todos: mata a esposa, sufocando-a com um travesseiro. Descobrindo poucos minutos depois que tudo se tratava de um plano de Iago, Otelo se suicida ao lado do corpo da amada.
É claro que muitas questões estão por trás desse homicídio, como as de gênero, mas vale observar como a ansiedade foi capaz de transmutar a realidade para Otelo – embora não justifique de forma alguma seu ato.
A ansiedade, como sabemos, é um quadro clínico que deve ser tratado e medicado por profissionais.
Se você se sente sempre deslocado, precisa de Hamlet
Ao falar de “Hamlet”, o príncipe gótico da Dinamarca, Catà não nos traz mensagens tão positivas. Afinal, alerta de spoiler, como tirar algo esperançoso de uma peça em que todos morrem? Dono de uma das frases mais célebres do teatro europeu, “Ser ou não ser”, Hamlet é o protagonista mais curioso de Shakespeare. É um louco, ao mesmo tempo que um príncipe. É um melancólico deprimido na mesma intensidade que é um vingativo ressentido.
A história do príncipe é relativamente simples (e familiar, se você já assistiu “Rei Leão”): um rei é assassinado pelo seu invejoso irmão, Claudio, deixando seu único filho, Hamlet, como o sucessor ao trono. Como parte do plano, no entanto, Claudio se casa com a mãe de Hamlet, a viúva Gertrudes, menos de um mês após a morte do monarca. Assume, assim, o trono do reino. Desacreditado com as ações do tio, Hamlet inicia uma jornada de vingança contra o usurpador – algo que lhe é encorajado quando vê o fantasma do pai certa noite.
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Hamlet, assim como o Aquiles de Homero, é um herói que, por conta de um evento traumático, se retira da vida humana e das condições que a ela são atribuídas. O jovem príncipe passa a viver como uma sombra no castelo, eternamente enfezado e insatisfeito com a vida. A postura de “aborrecente”, no entanto, é nem de longe superficial ou mera estética. O personagem representa todos aqueles que já se depararam com a “dor de existir, a inteligência da compreensão e a raiva por um mundo considerado hostil e falso”.
Enquanto a Corte dinamarquesa vive de aparências (como o próprio mundo), Hamlet busca a essência. Sua “loucura” nada mais é do que a resposta involuntária de quando se viu ou sentiu coisas demais. “Nisso consiste a loucura de Hamlet, como a de cada um de nós quando não aceitamos mais a vida como ela é: no propósito de deixar de jogar com os outros segundo as regras predeterminadas da vida, às quais já não reconhecemos um sentido”, escreve Catà.
Hamlet é o que acontece quando começamos a questionar demais as regras de um jogo. O filósofo Nietzsche, em seu “O nascimento da tragédia”, cita o personagem como um exemplo do espírito dionisíaco, isto é, aquele que ousa vislumbrar o abismo existencial humano: “O conhecimento mata a ação. Para agir, é preciso estar envolvido na ilusão.”
No fim das contas, ainda que seja desesperançosa, “Hamlet” nos ensina que não há nada de errado com isso. Se sentir deslocado, deprimido, sem esperanças faz parte do combo da existência humana. Em uma sociedade que prega que sejamos constantemente alegres, funcionais, amáveis e produtivos, se permitir sentir tristeza é como um ato de rebeldia, contra as máscaras e as castrações. Parte da sabedoria, ao contrário do trágico fim de Hamlet, é saber a hora de parar.
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