O estudante Pedro Henrique Rezende Machado foi um dos 22 candidatos que alcançaram a nota 1000 na redação do Enem 2021. O jovem de 17 anos, morador de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, redigiu uma dissertação-argumentativa de quatro parágrafos sobre o tema proposto, “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”.
Em entrevista ao G1, o candidato afirmou que nunca havia estudado a abordagem cobrada na frase temática. “De fato, essa questão da invisibilidade é muito recorrente. Ela associada ao registro civil é uma coisa que eu nunca tinha pensado, mas na hora eu desenvolvi bem”, disse ao portal.
+ Como interpretar a frase tema da redação do Enem?
Pedro Henrique construiu a argumentação de seu texto a partir de concepções filosóficas, citando os filósofos Nancy Fraser e Jean-Paul Sartre, e também o geógrafo brasileiro Milton Santos. Além disso, citou as garantias da Constituição Federal, os deveres do Estado, e as consequências sociais do capitalismo.
Confira abaixo a redação de Pedro Henrique na íntegra. Logo em seguida, os comentários sobre o texto publicado na Cartilha do Participante – A redação do Enem 2022, onde a redação foi usada como exemplo.
Para a filósofa estadunidense Nancy Fraser, o conceito de justiça social funde-se em duas frentes, sendo uma delas a do reconhecimento, referente à existência e à visibilidade de um determinado grupo ou indivíduo perante o poder público e a sociedade. Nesse viés, a fim do efetivo asseguramento da cidadania de seus indivíduos, o corpo estatal exige a materialização do existir de seus cidadãos mediante documentos oficiais, os quais proporcionam o acesso a prerrogativas e serviços que lhes cabem aos indivíduos registrados. No entanto, não raras são as ocasiões em que não há tais registros, o que levanta debates acerca da importância dos documentos civis e da devida regularização dos cidadãos à garantia de acesso à cidadania plena e, portanto, à visibilidade, no Brasil, embasados, sobretudo, na oportunidade de indivíduos alijados à sociedade ascenderem de condições de vida, somada à possibilidade de estes construírem ser verdadeiro “eu”. Tendo isso em vista, o Estado deve agir visando à facilitação e à democratização de tal processo civil.
De início, é notório o caráter indispensável do registro civil na promoção da cidadania, em especial, de indivíduos à margem da sociedade e da atuação do poder público, possibilitando sua ascensão social. Segundo o geógrafo Milton Santos, o Brasil vive um cenário de cidadanias mutiladas, em que, embora a Constituição preveja, de forma universal e indistinta, o acesso a prerrogativas, estas não são efetivamente consubstanciadas na prática, engendrando disparidades sociais baseadas, principalmente, no poder econômico dos membros da sociedade. Nesse contexto, pessoas em uma posição inferior de pirâmide social têm seus direitos renegados, em uma estrutura baseada no capital, restando ao Estado o dever de, ainda que parcialmente, complementar a iniciativa privada na oferta de serviços e de prerrogativas mercantilizadas, em busca de uma conjuntura de maior equidade social. Dessa forma, o registro civil, ao estabelecer a conexão indivíduo-poder público, permite que este atue de forma localizada e eficiente sobre comunidades ou cidadãos, com o fito de promover sua ascensão social, tendo o documento papel primordial nesse intermédio.
Além disso, já em um âmbito existencialista, a regularização do indivíduo, ao materializar sua existência, fornece um importante amparo na síntese de seu verdadeiro “eu”. Conforme o filósofo Jean-Paul Sartre, o homem é dotado de liberdade para construir sua essência, mediante tomadas de decisões, porém apenas quando sobre ela precede a existência humana. Nessa perspectiva, o fato de existir é imprescindível para que o cidadão, em seu íntimo, seja capaz de, ao longo de sua vivência, sintetizar quem ele realmente é, com toda a liberdade intrínseca a sua existência. Desse modo, o registro civil de uma família, por exemplo, permitirá que esta, sob um regime de supervisão e auxílio do Estado, seja atriz de sua própria história, definindo a essência de cada um de seus membros e sintetizando, de forma ativa, seu legado a gerações futuras, tornando-se mais visíveis a elas, ao corpo estatal e à sociedade como um todo, o que ressalta sua cidadania.
Portanto, em vista dos benefícios inerentes ao registro civil e sua facilitação, no que se refere à cidadania, faz-se necessário que o Estado, através de parcerias entre as esferas federal, estadual e municipal, democratize a retirada de documentos cidadãos, por meio da construção de centros de registro e cartórios em zonas periféricas ou interioranas, os quais disponibilizem atendimento integral e direcionado a indivíduos de baixa renda que não tiveram a oportunidade de reivindicar seus documentos. A finalidade de tal ação é ampliar e garantir o acesso à cidadania plena no Brasil, já que esta só pode ser integralmente alcançada, na maioria dos casos, com, no mínimo, a certidão de nascimento, justamente por informar o poder público a respeito de sua existência como cidadão. Somente assim, poder-se-á construir um cenário de justiça social e de reconhecimento igualitário dos indivíduos perante o corpo social e estatal, universalizando prerrogativas e fazendo da sociedade uma instituição harmoniosa e, em seu conjunto, cidadã.
Análise do Inep
O participante demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa, uma vez que a estrutura sintática é excelente e o texto não apresenta desvios de escrita. Em relação aos princípios da estruturação do texto dissertativo-argumentativo, percebe-se que o participante apresenta introdução em que expõe seu ponto de vista, desenvolvimento de justificativas que comprovam esse ponto de vista e conclusão que encerra a discussão, demonstrando excelente domínio do texto dissertativo-argumentativo.
O tema é abordado de forma completa já no primeiro parágrafo, quando o participante trata da importância dos documentos civis para que a cidadania dos indivíduos seja assegurada. Observa-se também o uso produtivo de repertório sociocultural pertinente à discussão proposta pelo participante em mais de um momento do texto. No primeiro parágrafo, são apresentadas as ideias da filósofa Nancy Fraser – para quem a visibilidade de um grupo ou indivíduo para a sociedade e para o poder público está associada ao conceito de justiça social – com o intuito de introduzir o tema, apontando a necessidade dos documentos civis para que um indivíduo seja considerado cidadão.
No segundo parágrafo, o participante utiliza o conceito de “cidadanias mutiladas”, de Milton Santos, para discutir o fato de que muitos brasileiros não têm acesso aos direitos previstos pela Constituição e de que o registro civil é o que permite que o poder público reconheça essas pessoas e possa mudar essa situação.
Já no terceiro parágrafo, em que o participante discute a construção do verdadeiro “eu” pelo indivíduo, é apresentado um pensamento de Jean Paul Sartre, que afirma que a existência humana é necessária para que o homem possa construir sua essência.
Percebe-se, também, ao longo da redação, a presença de um projeto de texto estratégico, com informações, fatos e opiniões relacionados ao tema proposto, desenvolvidos de forma consistente e bem-organizados em defesa do ponto de vista. Como apontado anteriormente, no primeiro parágrafo o participante apresenta a importância dos documentos civis para que um indivíduo tenha sua cidadania assegurada, ou seja, tenha acesso aos seus direitos, mas afirma que muitos ainda não possuem registro.
Nessa introdução também já é definido o caminho que o texto vai seguir: o participante quer tratar das consequências do acesso aos documentos – a ascensão social e a construção do “eu” pelo indivíduo – e afirma que é necessária uma ação do Estado para que isso seja possível. No início de sua argumentação, o participante trata da ascensão social dos indivíduos, mostrando que os brasileiros de classes sociais mais baixas não têm acesso aos seus direitos.
Nesse sentido, o registro civil é o que possibilita que o poder público reconheça esses indivíduos e se conecte a eles, atuando de forma a promover a equidade social. Já no terceiro parágrafo, é trabalhada a segunda consequência da regularização do indivíduo, que foi apresentada na introdução: a construção do verdadeiro “eu” por parte do indivíduo. De acordo com o participante, como o registro civil garante que um indivíduo exista, isso permitirá que ele possa definir quem realmente é e se tornar mais visível à sociedade, o que também garante sua cidadania.
Por fim, na conclusão, o participante propõe uma solução para o problema da ausência de registro, que havia sido apresentada no primeiro parágrafo: o Estado deve democratizar a retirada dos documentos civis.
Em relação à coesão, encontra-se, nessa redação, um repertório diversificado de recursos coesivos, sem inadequações.
Há articulação tanto entre os parágrafos (“Além disso” e “Portanto”) quanto entre as ideias dentro de um mesmo parágrafo (1º parágrafo: “Nesse viés”, “a fim de”, “seus indivíduos”, “mediante”, “No entanto”, “tais registros”, “portanto”, “sobretudo”, “Tendo isso em vista”; 2º parágrafo: “em que”, “estas”, “Nesse contexto”, “seus direitos”, “Dessa forma”, “este”, “com o fito de”; 3º parágrafo: “sua existência”, “porém”, “ela”, “Nessa perspectiva”, “para que”, “ele”, “Desse modo”, “esta”; 4º parágrafo: “sua facilitação”, “através de”, “por meio de”, “tal ação”, entre outros).
Por fim, o participante elabora proposta de intervenção muito boa: concreta, articulada à discussão desenvolvida no texto, detalhada e que respeita os direitos humanos. Ele propõe que o Estado democratize o registro para pessoas de baixa renda, construindo centros de registros e cartórios em regiões periféricas e rurais, o que ampliaria o acesso à cidadania e, consequentemente, permitiria a construção de um cenário de justiça social.
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