O Enem 2020 foi a cara do Brasil
Exame em plena pandemia foi retrato da desigualdade do país: teve aglomeração, mas teve organização; teve despreparo, mas teve muita aula online
Quando os portões se fecharam, no primeiro dia de prova do Enem 2020, no domingo (17), tive uma sensação de alívio. Não vi nenhum atrasado e, mais importante no contexto de pandemia, não presenciei nenhuma aglomeração.
Na porta da Universidade Santa Úrsula, em Botafogo, tinha, no máximo, um grupo pequeno de amigos batendo papo com a máscara no queixo – uma versão mais organizada de qualquer esquina do Rio. Alguns pais, de máscaras, se despedindo dos filhos com abraço, gesto raro nos tempos pandêmicos. E, já dentro do local de prova, candidatos concentrados para a longa prova de Humanidades, Linguagens e Redação.
Eram esperados 1 mil alunos no local, mas difícil saber quantos de fato tinham ido fazer a primeira parte do exame. O que se sabe é que, na média, mais gente faltou do que foi (a abstenção de 51,5%). A percepção foi de tranquilidade, de uma prova organizada e sem riscos – ou com níveis aceitáveis de risco em plena alta de casos de covid-19. Descontando a ausência recorde, eu tenderia a concordar com a avaliação do ministro da Educação, Milton Ribeiro” “um sucesso”.
Mas esse foi só um dos “Enens” de 2020.
Logo depois de fechar o bloquinho e entrar no carro para voltar para casa (a nova redação), comecei a ver relatos de candidatos barrados por causa de salas acima da capacidade permitida. Os impedidos estavam em poucos lugares de prova de cidades espalhadas pelo Brasil – só a capilaridade das redes sociais para encontrá-los. E havia também os aglomerados. E uma parte deles estava logo ali, em Duque de Caxias, mostrava um vídeo que viralizou.
No segundo dia do exame, cheguei à Unigranrio de Duque de Caxias junto com a abertura dos portões, às 11h30. Já havia muitas pessoas encostadas na grade da faculdade, onde 5 mil candidatos estavam inscritos. O problema começa aí: como manter um lugar de prova tão grande em meio à alta dos casos de covid-19? E, para piorar a situação, o acesso era feito apenas por um portão.
Mas a entrada única estava longe de ser o principal problema. Especialmente no primeiro dia, os candidatos consideravam estar numa fila para ter acesso às salas – o que acabou gerando a correria aglomerada logo antes do fechamento dos portões. Pura falta de informação. No segundo dia, alguns fiéis de uma igreja evangélica que seguravam cartazes motivacionais espalharam a mensagem: “não é fila, podem entrar, o portão está aberto!” Os gritos aceleraram um pouco o fluxo, diminuindo o aperto perto das 13h.
Mas a real é que, mesmo que tudo estivesse bem sinalizado, muitos estudantes não queriam mesmo entrar. Ficar numa sala fechada, sem ar condicionado (regras da pandemia), sem celular, sem amigos por mais de uma hora só fazia lembrar de tudo que os estudantes não haviam feito até chegar ao exame. E ninguém queria ficar a sós com a própria ansiedade – que, em certa medida, parecia mais assustadora do que a perspectiva de pegar covid-19 na aglomeração lá fora.
A realidade é que muitos até tiveram aulas online. Mas outros nem essa sorte tiveram – uma aluna me contou que teve o celular roubado e ficou 3 meses sem internet. A maioria também veio sozinha para o exame – menos pais e mais amigos eram a constante na porta do exame. Talvez porque a família estivesse correndo atrás do próprio sustento, mais ameaçado na crise agravada pela pandemia.
A busca por uma renda estava ali representada nos camelôs vendendo água, lanches ou canetas pretas. E numa das banquinhas, uma imagem resumiu o que fazemos com nossa juventude. Tentamos protegê-la, sem sucesso, dos perigos do mundo que chegam silenciosamente, como um vírus.
Não, senhor ministro. O Enem não foi um “sucesso”. Tampouco foi “tranquilo”, como qualificou na coletiva de imprensa depois do segundo dia. Mas também não foi só de aglomeração e desassistência. O Enem 2020 foi o retrato do Brasil: extremamente desigual. Não consigo pensar em outro resumo para o resultado da insistência do Inep em manter o Enem mesmo com a alta de casos. E, com isso, faço um mea culpa jornalístico: num país tão díspar, precisamos nos esforçar mais para retratar a realidade. Porque ela é sempre múltipla.
Quando os estudantes usaram as redes sociais para pedir #AdiaEnem apontando desigualdades na preparação, não sabiam que elas iriam ficar tão evidentes no dia do exame. Mas, do país com a segunda maior desigualdade de renda do mundo (atrás apenas de Botsuana), não se poderia esperar um outro exame. O Enem foi a cara do país.