Nem surpreendente nem esperado. Até classificar o perfil do tema da redação do Enem 2019, sobre “Democratização do acesso ao cinema no Brasil“, não está fácil. Isso porque a proposta surpreendeu quem imaginou que o tema seria menos crítico, menos “polêmico”, mas ao mesmo tempo atendeu as expectativas quando comparado às edições anteriores da prova.
Sérgio Paganim, coordenador de Linguagens do Anglo, afirmou que a proposta reúne os aspectos que já costumávamos ver em redações do Enem: um tema social, ligado a cultura e que faz parte do universo de assuntos que um candidato concluinte do Ensino Médio poderia desenvolver. A coordenadora de Redação do curso Poliedro, Maria Catarina Bozio, é da mesma opinião, e ainda destaca o fator cidadania e direitos. Afinal, o acesso à cultura é um direito.
Textos motivadores e recorte do tema
A proposta de redação deste ano trouxe quatro textos de apoio. O primeiro deles, de Jean-Claude Bernardet, fazia uma retomada histórica da criação do cinema e, segundo o professor Antunes Rafael dos Santos, diretor da Oficina do Estudante, introduzia o candidato ao tema mostrando como o cinema superou expectativas ao se mostrar um importante instrumento cultural.
O segundo texto traz a frase de um sociólogo, Edgar Morin, que ressalta o papel do cinema como expressão artística – a reflexão e criticidade que ele provoca no espectador e, consequentemente, o impacto social que isso tem, já que quem assiste é chamado para dialogar com esses temas.
Já os últimos dois textos conversam muito entre si e são mais informativos. O terceiro traz dados sobre o consumo e o acesso ao cinema no Brasil, evidenciando uma realidade que mostra que esse acesso não é democrático. Já o quarto texto é uma justificativa para o terceiro: ele evidencia quais fenômenos sociais fizeram com que o cinema ficasse restrito a algumas classes e regiões.
Embora todos os textos da coletânea apontassem para a necessidade de democratização do cinema, um detalhe referente ao entendimento do que é cinema pode ter gerado dúvidas entre os candidatos, como aponta o professor Paganim. Segundo ele, isso acontece porque cinema é uma palavra polissêmica e comporta mais de uma interpretação. O candidato poderia falar do cinema como expressão artística, enfoque mais explorado nos textos um e dois da coletânea, ou no cinema como aparelho cultural, espaço de exibição, enfoque dos textos três e quatro. O desafio para o candidato era enxergar essas duas possibilidades.
O importante, segundo os três professores consultados pelo GUIA, era que o candidato percebesse que os textos da coletânea apontavam para a defesa da democratização da cultura – e esperava-se que sua argumentação fosse neste sentido.
Se o candidato partisse da perspectiva do cinema como espaço, poderiam ser exploradas na argumentação as informações fornecidas pelos dois últimos textos para analisar um cenário em que a maioria das pessoas, em função de questões financeiras ou mesmo espaciais/regionais, ainda não tem condições de frequentar cinemas. Já para explorar o papel do cinema como arte, cabia uma reflexão sobre os impactos que a falta de contato com o cinema poderia acarretar na sociedade.
Financiamento da cultura e fuga do tema
Assim que o tema da redação foi divulgado pelo ministro da Educação, o termo “Ancine” se tornou de pronto um dos assuntos mais comentados do Twitter. A União Nacional dos Estudantes (UNE) comentou em suas redes sociais que Bolsonaro não iria bem na redação caso fizesse a prova. Isso porque, desde o começo da sua gestão, o presidente tem tomado medidas contra a Lei Rouanet e a Ancine (Agência Nacional do Cinema), ambas consideradas formas de fomento à produção cultural.
Mas, afinal, o candidato poderia falar da Ancine na sua redação ou isso seria considerado fuga do tema? Segundo a professora Maria Catarina, não teria problema algum que o candidato citasse, como contexto ou mesmo um dos argumentos do texto, a redução de investimento na área da cultura e os cortes na agência, mas esse não poderia ser o centro do texto e pauta central – já que, sozinho, o baixo investimento na Ancine não explica a dificuldade de acesso ao cinema.
As discussões sobre o investimento na área da cultura estiveram bastante presentes no debate público e foram amplamente pautados pela mídia no primeiro semestre do ano. Por isso, citá-los seria também uma forma do candidato demonstrar repertório sobre o tema, destaca o professor Sérgio Paganim.
Propostas de intervenção
Aumentar o investimento em órgãos e leis de fomento à cultura poderia ser, inclusive, uma das propostas de intervenção apresentadas pelos candidatos no parágrafo de conclusão do texto. Caberia, portanto, falar da Lei Rouanet e da Ancine – não sozinhas, mas como medidas complementares. Além disso, o candidato poderia sugerir iniciativas que reduzissem o preço do ingresso de cinema para torná-lo mais acessível, além da promoção de exibições de filmes ao ar livre em cinemas e parques, sugere a professora do Poliedro.