Na literatura, falar de triângulos amorosos está longe de ser uma novidade. Nikolai Tchernychevskii o fez no clássico russo “O que fazer?“. A escritora inglesa Emily Brontë deu sua contribuição em “O Morro dos Ventos Uivantes“. Machado de Assis, então, nem se fale: eternizou o dilema com Bentinho, Capitu e Escobar em “Dom Casmurro“. Mas se engana quem pensa que estes livros se esgotam em romantismo – no sentido açucarado da palavra, e não na escola literária. Na mão de escritores habilidosos, triângulos amorosos são instrumento para discutir dilemas morais, ambiguidades, transformações da sociedade e muito mais. O mesmo vale para “Angústia“, terceiro livro de Graciliano Ramos.
Na obra, lançada em 1936, o escritor alagoano apresenta um Brasil em profunda transformação por meio de três personagens, valendo-se de metáforas, recursos estilísticos um tanto machadianos e construindo, por fim, uma narrativa, quem diria, angustiante. Neste texto, conheça o enredo da obra, seu contexto histórico e principais características. Caso prefira, você também pode ouvir aqui o episódio do podcast Marca Texto que analisa o livro.
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Enredo de Angústia
O leitor que começa a ler “Angústia” se depara, logo no início do livro, com um mistério. O narrador-personagem Luís da Silva, que também é o protagonista, acaba de se levantar de uma grande crise que o acometeu há 30 dias e o lançou na cama, delirante e com febre. É a história desta crise que ele conta nas páginas seguintes.
A virada na vida de Luís, homem sem posses mas de algumas economias, acontece quando ele começa a se envolver com a vizinha, Marina. Ela é descrita como uma mulher forte e de personalidade, e mais tarde Luís começa a pintá-la no livro também com ares de interesseira. A relação entre os dois começa a se desenrolar com alguns encontros no quintal, mas logo assumem um compromisso.
Quanto mais se envolvem, no entanto, mais Marina passa a exigir: para se casar, precisa de enxovais, roupas de cama, móveis, tecidos. Luís acaba com todas as economias na esperança de mantê-la por perto, e chega a se endividar para seguir presenteando a noiva. Até que o terceiro elemento do triângulo amoroso de “Angústia” aparece na história.
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Julião Tavares é um homem, na visão do protagonista, degenerado. Descrito como inconveniente e repulsivo, ele conquista a atenção de Marina. Afinal, apesar de não vir de uma família tradicional, é herdeiro de uma loja de tecidos e rico. Para a vizinha de Luís da Silva isso bastava. Aos poucos, o protagonista e sua noiva vão se distanciando, até que ela começa a se encontrar com Julião. O novo pretendente a corteja com jantares, a leva no teatro e a presenteia com roupas.
Com o desenrolar do romance, a raiva de Luís só cresce. Além de ter se endividado comprando tudo o que poderia oferecer à vizinha, acabou abandonado. Ele passa a perseguir Marina, vigiando seus passos, em uma obsessão. E nota quando ela é abandonada por Julião – que logo começa a namorar outra moça.
O narrador também relata ter escutado uma conversa de Marina com sua mãe em que ela confessa ter engravidado de Julião, e dias depois a segue quando ela vai ao encontro de uma parteira conhecida por fazer abortos. Luís confronta Marina e ela pede que a deixe em paz.
Tomado pela raiva, Luís decide seguir um ímpeto que já tinha em sonhos: matar Julião. Com uma corda que ganhou de um andarilho, ele espera o rival sair da casa da nova namorada e o ataca pelas costas, sufocando com a corda. Depois, pendura o corpo em uma árvore para simular um suicídio.
Esse, afinal, foi o grande acontecimento que perturbou o protagonista e o deixou em estado de delírio.
Principais características
Quem leu e se aprofundou nas críticas sobre “Dom Casmurro“, clássico de Machado de Assis e que certamente serviu de inspiração para “Angústia”, já deve ter ouvido o termo narrador não confiável. Afinal de contas, como saber se Capitu de fato traiu Bentinho se o livro é contado do ponto de vista dele? No caso do livro de Graciliano Ramos, a reflexão também é válida.
A história é contada pelo narrador-personagem Luís e, por isso, atravessada pela sua interpretação acerca dos fatos e dos outros personagens. Julião seria de fato um homem tão repulsivo quanto narrado por ele? Marina seria apenas interesseira? Os questionamentos são válidos para entender a obra, mas para o professor de literatura do Anglo, Maurício Soares, não resta outra opção ao leitor senão acreditar no que o narrador conta. “Eu só cheguei perto da Marina via Luís da Silva. Então eu posso até desconfiar, mas não sei o que fazer com essa minha desconfiança”, analisa.
Um outro aspecto que coloca em xeque os acontecimentos apresentados no livro é o fato de Luís estar completamente atordoado, ainda delirante, quando os escreveu. Não há comprovação, por exemplo, de que Marina tenha estado grávida e abortado. Mesmo o principal acontecimento do livro, o assassinato de Julião, parece por vezes um delírio: Luís não é punido pelo crime e sequer ouve falar publicamente a respeito da morte do rival.
Para criar essa narrativa delirante, de um homem que se sente perseguido e angustiado pelas circunstâncias, Graciliano Ramos se valeu de um recurso chamado fluxo de consciência, que o professor do Anglo descreve como uma questão estilística. “Vamos entender que o fluxo de consciência é basear o meu discurso em associações livres, coisas que vem à minha cabeça aleatoriamente, de forma caótica e que eu posso associar”, afirma.
Segundo ele, no fluxo de consciência não há uma preocupação com a organização gramatical, racional – e por isso a leitura de “Angústia” pode parecer caótica ao leitor, porque os acontecimentos não estão organizados. Foi a forma mais fiel que Graciliano encontrou de dar vazão à história daquele homem perturbado por sucessivas tragédias e que ainda não as tinha assimilado. “É um fluxo do que vem à minha consciência transformado em palavras. Por isso um fluxo de consciência verbal”, conclui Maurício.
Angústia, um retrato do Brasil
Os primeiros leitores a terem um exemplar autografado do livro “Angústia” foram nomes conhecidos da história e política brasileira: Eneida de Moraes, Olga Benário e Aparício Torelly. Todos presos, ao lado de Graciliano Ramos, acusados de comunistas. O professor de Letras da USP, Fábio Cesar Alves, conta que o terceiro romance de Graciliano foi publicado a contragosto quando ele ainda estava na prisão, em 1936. Enquanto o mundo assistia a ascensão de governos fascistas, o Brasil atravessava a ditadura de Getúlio Vargas.
Embora não fale a respeito da perseguição política ou da repressão, Angústia retrata muitas das transformações recentes que o Brasil atravessava. Centrado em Maceió – e também por isso reconhecido como uma obra da segunda fase do Modernismo, a regionalista – o livro busca representar por meio dos personagens os dilemas enfrentados pela sociedade naquele momento. Luís da Silva, por exemplo, é a representação do Brasil agrário e oligárquico que entrava em decadência. Ao longo da narrativa, descobrimos que seu pai se chamava Camilo Pereira da Silva e o avô Trajano Cavalcante Silva – e a perda progressiva dos sobrenomes mais nobres serve como representação dessa decadência.
O narrador do livro, em diversos momentos, sente-se deslocado e frustrado ao ver a modernização do país e como os antigos títulos e sua origem passam a valer pouco. Do outro lado, seu rival representa uma nova elite burguesa, que se estabelece não pela origem, mas pelo dinheiro.
“Para Luís da Silva, Julião Tavares, com quem disputa o amor de Marina, representa a burguesia arrivista que ele tanto odeia. É o poder do dinheiro e não mais da posição social herdada. Portanto, há um confronto entre o velho país colonial e o novo país que começava a ser construído a partir da era Vargas”, avalia o professor da USP.
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