Ele sobreviveu a um campo de concentração nazista – e desenhou tudo depois
Thomas Geve tinha 13 anos quando chegou a Auschwitz. Nesta entrevista, ele narra a vida no campo e fala da importância de se lembrar do passado
Thomas Geve tinha apenas 13 anos quando foi deportado para Auschwitz, o mais famoso dos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Junto da mãe – de quem foi separado assim que chegou ao campo, em 1943, e que acabaria assassinada meses depois -, o adolescente sobreviveu por 22 meses em condições desumanas: trabalho extenuante do nascer ao pôr do sol, fome extrema, doenças contagiosas. Para piorar, ainda havia o perigo iminente de ser enviado para uma das temidas câmaras de gás: salas fechadas em que dezenas de pessoas eram confinadas para respirar um gás tóxico até a morte.
O motivo para tanto sofrimento? Thomas era judeu. Apesar de ter nascido e crescido na Alemanha, e de ter sido socializado como qualquer outro menino alemão da época, o adolescente e sua família passaram a ser perseguidos pelo governo depois que o líder nazista Adolf Hitler chegou ao poder por lá. Hitler, um político totalitário e de extrema direita, tinha um projeto de poder racista e violento: o objetivo era livrar o país de todos que não fossem “alemães puros”, na chamada “Solução Final“. A “solução”, no caso, era matar – de forma quase industrial, dentro de campos de extermínio – judeus, homossexuais, roma (conhecidos também como ciganos), comunistas e opositores políticos.
O que foi o Holocausto?
Seis milhões de judeus foram mortos assim, no episódio que ficou conhecido como Holocausto. Outras centenas de milhares sobreviveram para contar ao resto do mundo o que aconteceu dentro dos campos, entre eles Thomas Geve. O que torna a história de Thomas especial é o que ele fez imediatamente depois de ser liberado de Auschwitz ao fim da guerra. Por ser apenas um adolescente – um dos poucos nessa faixa etária entre os sobreviventes, uma vez que não eram permitidos prisioneiros menores de 15 anos -, em vez de narrar ou escrever o que viu lá dentro, o menino desenhou o que viveu.
Thomas produziu 85 ilustrações imediatamente depois de ter sido libertado. Isso não inclui apenas os cenários de Auschwitz. Thomas desenhou mapas, listas de atividades, letras de música que as pessoas cantavam, a orquestra do campo de concentração, a hora da refeição e a desinfecção de piolhos. As imagens ficaram décadas guardadas em um cofre – o que permitiu que resistissem bem à passagem dos anos – e foram lançadas em forma de livro apenas em 2021. Agora, “O Menino que Desenhou Auschwitz” também chega ao Brasil, pela editora Alta Life.
De sua casa em Israel, Thomas Geve – hoje em dia com 94 anos – conversou com o GUIA DO ESTUDANTE. De saúde frágil e idade avançada, a existência de Thomas ressalta o inevitável: temos apenas mais alguns anos para ouvir em primeira mão os relatos de quem sobreviveu à perseguição nazista. Depois disso, com a morte dos últimos sobreviventes, o Holocausto ficará um passo mais próximo do esquecimento – uma tendência que de fato vem se concretizado. Uma pesquisa feita em 2020 nos EUA com jovens da geração Z e millenials indicou que quase dois terços dos entrevistados não sabiam que 6 milhões de judeus foram assassinados durante o regime nazista.
Para que isso não aconteça, deixemos que Thomas (com a ajuda de sua filha Yifat) conte sua história.
Por que você resolveu retratar em desenhos a vida dentro de Auschwitz?
Bem no final da guerra, quando viram que iriam ser derrotados, os alemães resolveram tirar todo mundo de Auschwitz. Fui parar no campo de Buchenwald, onde finalmente fomos libertados em abril de 1945. Mas eu não tinha para onde ir. Eu estava muito fraco e doente, não conseguia andar. Então, por mais dois meses eu fiquei lá em Buchenwald. Comecei a desenhar porque queria contar ao meu pai o que eu tinha vivido. [O pai de Thomas, Erich, havia fugido da Alemanha anos antes, e estava morando na Inglaterra quando a guerra acabou.]
Como foram esses meses no quais você fez os desenhos?
Os americanos chegaram e começaram a nos ajudar. Eles queriam nos recuperar porque estávamos em um estado terrível, mas começaram nos dando comida demais. Ficamos passando mal, muitos morreram disso até. Outra coisa que eles fizeram foi separar os sobreviventes de acordo com as línguas que eles sabiam falar – o contrário do que os nazistas faziam. Dentro do campo de concentração, nos misturavam com pessoas de outros países para que não pudéssemos nos rebelar. Mas os americanos me botaram com outros homens que falavam alemão e começamos a nos ajudar. Como eu era o único adolescente, um dos oficiais americanos me deu um bloco de cartões postais, umas fichas nazistas de 10 por 15 centímetros, brancos de um lado. E me deu também uns pedaços de lápis de cor, e comecei a desenhar os eventos que eu vi. Eu me lembrava de tudo.
Em junho eu deixei Buchenwald, e me mandaram para a Suíça para me recuperar. Lá, conseguiram localizar o meu pai e, em novembro de 1945, eu fui pra Inglaterra, onde ele estava. Eu tinha 16 anos quando o reencontrei.
Tem coisas que ficaram de fora das ilustrações e dos relatos que acompanham as imagens?
Sim, todas as coisas horríveis. Muitas pessoas escreveram sobre como as pessoas morreram lá dentro. Eu não queria escrever sobre isso. Eu queria escrever como as pessoas viveram, como sobreviveram, como se ajudavam, o que as dava esperança. Acho que tem a ver com o fato de eu ser tão jovem. Os adultos dentro de Auschwitz passavam muito tempo se lamentando por causa de tudo que haviam perdido: suas famílias, seus filhos, seus empregos, suas lojas, suas casas. Mas eu e os outros mais jovens pensávamos muito no futuro, no que ainda ia acontecer. Acho que isso nos manteve mais fortes – e mais abertos com as outras pessoas. Isso nos ajudou a sobreviver. A gente brincava, cantava, jogava xadrez, contava piadas.
Anos depois dos acontecimentos, seus desenhos foram checados por historiadores, que ficaram surpresos com a precisão das imagens e informações. Quando ainda estava dentro de Auschwitz, você já pensava em anotar tudo depois?
Dentro de Auschwitz, eu participei de um projeto chamado “Mauerschule”, um tipo de escola de pedreiros, que nos preparava para trabalhar fazendo consertos. Isso já foi uma grande sorte. A maior parte das pessoas que chegava lá era usada para trabalhos pesados até que não aguentassem mais, e então eram enviados para a morte. Mas a minha sorte é que decidiram que seria mais rentável pegar os prisioneiros mais jovens e fortes, e ensiná-los uma profissão. Então era como se fosse um campo de concentração dentro do campo. Nos tratavam melhor do que os outros prisioneiros, e eu tinha a permissão de ficar andando por Auschwitz inteira, o que não era tão comum. Por isso eu pude ver tanta coisa com precisão. Tudo que acontecia de mais criminoso dentro de Auschwitz era escondido dos prisioneiros: os assassinatos, os experimentos médicos com pessoas. Não queriam que as pessoas parassem de trabalhar. Mas eu podia andar por quase todas as áreas dentro e fora do campo, sempre vigiado, é claro. Então eu vi muito mais que um prisioneiro comum, e falei com civis nas redondezas do campo, então juntei o máximo de informação possível.
Você poderia contar como foi o encontro com a sua mãe dentro do campo? Imagino que não fosse algo muito comum entre prisioneiros…
Depois de alguns meses dentro de Auschwitz, eu comecei a receber bilhetes da minha mãe, que estava no outro campo, onde ficavam as mulheres. Isso era uma coisa muito perigosa, e dependia da ajuda de muitas pessoas, que estavam arriscando a sua vida para passar os bilhetes para frente. Hoje em dia, imagina-se que a minha mãe tenha participado de atividades secretas, de resistência, no campo dela – por isso havia tanta gente grata e disposta a ajudá-la passando os bilhetes adiante. E teve também um único dia, em que todo mundo organizou para que eu pudesse encontrá-la por uns minutos. Caminhamos lado a lado por um tempo, nos demos a mão rapidamente, consegui beijá-la. Foi um momento milagroso. Depois não nos vimos nunca mais.
O que você acha das pesquisas recentes que indicam que o Holocausto está caindo em esquecimento? O que diria para as pessoas que não conhecem as histórias?
É importante conhecer o passado e aprender com ele. É importante pensar no passado para que a gente crie um presente melhor, para que a gente faça o certo, trate bem uns aos outros. Depois que eu fiz os meus desenhos, comecei a escrever também o que eles representavam [as ilustrações e relatos estão lado a lado no livro lançado agora no Brasil], para que o mundo soubesse como era a vida dos adolescentes dentro do campo. Queria que soubessem que sobrevivemos porque ajudamos uns aos outros.
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