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Escravos: povo marcado

Libertos, sem rumo e sem teto, os negros espalhados pelas cidades e fazendas brasileiras não receberam um tostão pelos 350 anos de trabalho forçado

Por Felipe van Deursen
Atualizado em 16 Maio 2017, 13h28 - Publicado em 11 ago 2009, 17h18

Vestida em rendas valencianas e sedas peroladas, a princesa regente procurava passagem no meio da multidão de 10 mil pessoas, na tentativa de chegar ao balcão do Paço, no Rio de Janeiro. Sob uma chuva de flores atiradas por senhoras, conseguiu subir à sacada. Eram 15 para as 3 da tarde quando entrou na sala do trono e assinou a lei 3 353 com uma pena de ouro. Do lado de fora, ao saber que a princesa Isabel havia sancionado a Lei Áurea e posto fim à escravidão, o povo explodiu em gritos, vivas, salves. Festa parecida com a que tomou a ilha de Itaparica, na Bahia: por três dias e três noites, tambores e batuques ecoaram pelas copas das mangueiras. Mas os relatos de uma velha escrava da ilha contam que, acabada a comemoração, o senhor do engenho reuniu todos os escravos e os mandou embora, um a um. Os negros partiram dali sem terra, sem comida, sem dinheiro, sem sapatos, vestidos em roupas velhas de algodão grosso. Naquela dispersão miserável começava a liberdade.

De acordo com os termos da Abolição (de 13 de maio de 1888), a lei oficializou o princípio jurídico da igualdade. “Muitos foram os que saíram dos engenhos e fazendas para buscarem a liberdade na pesca e na mariscagem, outros para seguirem Antônio Conselheiro. Houve os que se embrenharam nas matas para constituírem os novos quilombos. Para todos esses rurais, o preço da liberdade era a miséria. Para a grande maioria, no entanto, a impossibilidade de acesso à terra tolhia os sonhos de liberdade”, escreveu o historiador Ubiratan Castro de Araujo, no artigo “Reparação Moral, Responsabilidade Pública e Direito à Igualdade do Cidadão Negro no Brasil”.

O regime escravocrata já estava enfraquecido desde o início do século 19, e a lei significou, na prática, o fim do sistema mercantil que vigorou no país desde a chegada do primeiro navio negreiro, em 1531. Dos cerca de 10 milhões de negros capturados em diversas regiões da África para serem vendidos como escravos destinados às Américas, aproximadamente 4 milhões desembarcaram na costa brasileira. Nagôs, jejes, angolas e benguelas foram algumas das principais etnias obrigadas a viver por aqui. Representam muito do que somos hoje: uma nação que conviveu com três séculos e meio de escravidão e apenas 121 anos de trabalho livre.

À venda

A escravidão não é invenção dos portugueses e já existia na África. Mas o tráfico mercantil, liderado por Portugal e depois pelo Brasil, espalhou a prática em escala sem precedentes no oceano Atlântico. “Perversidade intrínseca: escravos eram adquiridos pelos traficantes em troca de mercadorias produzidas pela força de trabalho escrava”, escreveu o historiador Jaime Pinsky em A Escravidão no Brasil. Eram embarcados entre 200 e 600 negros na África, a cada viagem. Vinham amarrados por correntes e separados por sexo. Sofriam, além do desconforto físico, falta de água e doenças. No século 19, dos que vinham de Angola, 10% morriam na travessia, que demorava de 35 a 50 dias.

Assim que chegavam ao Brasil, eles eram postos em quarentena, a fim de evitar mais perdas por doenças. E, para causarem boa impressão, submetidos à engorda e besuntados em óleo de palma, que escondia feridas e dava vigor à pele. Faziam exercícios para combater a atrofia muscular e a artrose. Depois, seguiam para os mercados de negros da cidade, como o Valongo, na Gamboa, região central do Rio de Janeiro. De cabelos raspados, velhos, jovens, mulheres e crianças eram avaliados pela clientela, que apalpava dentes, membros e troncos. Um viajante alemão, em viagem à Bahia no século 19, descreveu: “Assim, pelados, sentados no chão, observando, curiosos, os transeuntes, pouco se diferenciam, aparentemente, dos macacos”.

A existência do mercado chegou a se tornar problema de saúde pública, porque os mercadores atiravam cadáveres de africanos em um terreno próximo. Um juiz do distrito, em 1815, ordenou aterrar a área e proibiu a prática: “Mande notificar a todos os negociantes que recolherem pretos no Valongo para que nunca mais se atrevam a lançar para ali cadáveres”. Hoje, resta quase nada desses mercados. “A urbanização, apoiada pela consciência culposa, destruiu esses vestígios”, afirma a historiadora Katia de Queirós Mattoso no livro Ser Escravo no Brasil.

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O mesmo ofício que proibiu covas rasas no pântano do Valongo impôs, como penalidade, multa de 30 mil-réis aos armazéns responsáveis, identificados pelas marcas feitas a ferro quente na pele dos escravos. Segundo documentos do Arquivo Nacional, os negros ganhavam, ainda na África, as iniciais do traficante; e, ao chegarem aqui, as letras de seus proprietários. A cada vez que fossem vendidos, seriam novamente marcados. Dom Manuel, rei de Portugal, foi um dos primeiros a adotar essa prática dolorosa, no início do século 16, com os escravos da coroa. Também era comum gravar uma cruz no peito dos que eram batizados. E, em 1741, o governador da capitania do Rio, Gomes Freire de Andrade, determinou que os negros fugitivos, uma vez pegos, fossem marcados com um F e obrigados a usar um cordão de estacas. De modo que, se escapassem uma segunda vez, teriam como castigo adicional uma orelha cortada. As marcas e mutilações só seriam extintas com o Código Criminal do Império, em 1842.

Imensa minoria

Esse povo marcado ia tocando a vida em frente e se misturando à cultura brasileira. “A alforria e a miscigenação geraram uma população mestiça livre que gradualmente se tornou, já na época colonial, quase tão numerosa quanto a escrava, tendo limitações, entretanto, no exercício do sacerdócio, na tropa de primeira linha ou no preenchimento de cargos públicos”, escrevem os pesquisadores Ida Lewkowicz, Horacio Gutiérrez e Manolo Florentino no livro Trabalho Compulsório e Trabalho Livre na História do Brasil. Segundo eles, em 1872, pardos e mulatos livres já eram maioria, ou 42% da população: 4,2 milhões, em comparação a 1,5 milhão de escravos. Ou seja, os negros estavam em vastas áreas rurais e ocupavam as ruas das principais cidades da colônia.

No cenário posterior à Abolição, surgiram tentativas de estabelecer novas relações de trabalho para esse grande contingente. “O fim da escravidão era uma possibilidade de recomeço”, escreveu Ubiratan Castro de Araujo. Ele cita o caso raro do advogado Leovigildo Filgueiras, que chegou a criar uma entidade para intermediar contratos entre ex-escravos e novos patrões, a Sociedade Treze de Maio. Mas em vão: “Nem mesmo essa tentativa de precoce terciarização [criação de um setor terciário, de serviços] funcionou. Continuaram os favores, as obrigações e as clientelas”. Outra experiência foi a Guarda Negra – segundo o historiador, um movimento político de apoio à princesa Isabel e ao Terceiro Reinado, que pretendia arregimentar simpatia popular e abrir frentes de trabalho onde antes só havia brancos. “Assistimos então pelos jornais baianos ao debate entre negros da Guarda e negros republicanos, que identificavam a monarquia com a escravidão. Uma vez vitoriosa a República em 1889, a Guarda Negra foi suprimida e os seus líderes mais ativos banidos para a Amazônia, como foi o caso do baiano Manuel Benício dos Santos, conhecido como Macaco Beleza.”

A sociedade branca não queria perder seus privilégios. E tratou de reforçar todos os comportamentos que distanciassem os negros na hierarquia social e na divisão do trabalho. Salvador, a terceira cidade com o maior número de negros no Brasil no século 19 (a primeira era o Rio), exemplificou a recusa: “Após 1888, a sociedade baiana torna-se um corpo assentado, fechado. Suas camadas superiores assumem uma consciência, aguda como nunca antes, de tudo do que pode separar o homem branco do preto ou do mestiço. A cor da pele, antes ‘esquecida’, torna-se, entre ricos e pobres, uma fronteira nítida. O branco da terra que não teve sucesso econômico passa a ser um negro. (…) Nas relações humanas fortalecem-se todas as regras da humildade, da obediência e da fidelidade dos séculos de escravidão”, afirma Kátia Mattoso. No caso dos negros dispensados em Itaparica, por exemplo, a pesquisadora diz que “muitos atravessam a baía, refugiam-se na grande cidade, acrescentam-se a uma população marginal que tem todas as dificuldades do mundo para arranjar trabalho”.

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Cidade negra

O Brasil foi o país de maior e mais longa escravidão urbana. Nas cidades, o escravo tinha mais independência do que no campo. “Ele circulava nas ruas, estabelecia vínculos com os homens livres humildes”, escreveu Kátia. Havia mais chances de encontrar membros da mesma etnia, em festas e confrarias religiosas realizadas em praça pública, e a presença do senhor era menos opressiva. Os escravos, mestiços, forros, libertos circulavam fornecendo serviços, e podiam ser alugados. Os acordos com os senhores também eram flexíveis: havia escravos que recebiam somente comida e roupa, outros, “escravos de ganho”, repassavam ao senhor uma porcentagem dos pagamentos feitos pelos seus clientes.

Eles vendiam doces, refrescos, frutas, aves e ovos, roupas, chaleiras, velas, estatuetas de santos, poções de amor. Ou atuavam nos demais ofícios, como barbeiros, ferreiros, quitandeiros, parteiras, doceiras, mascates, lixeiros, carregadores. Transportavam tudo nos ombros e nos braços, até pessoas – brancos brasileiros e estrangeiros acomodados em cadeirinhas almofadadas. O dinheiro acumulado na prestação desses serviços podia um dia comprar a carta de alforria. Sabendo disso, os senhores renovavam as exigências na negociação. Uma escrava costureira, libertada em 1728, aceitou continuar servindo de graça a sua senhora. E o mulato Isidoro Baptista teve a liberdade prometida para “uma hora antes da morte” de seu senhor. Na década de 1880, sentindo o fim da escravidão, muitos senhores emitiram dezenas de alforrias de uma só vez, sob a condição de que os escravos trabalhassem mais sete anos.

Nas cidades, ficava difícil, mas possível, comprar a alforria. Nas fazendas de café ou nos canaviais, contudo, era mais raro. Os engenhos de açúcar impunham uma rotina brutal. Durante a safra, eles funcionavam por até 20 horas por dia, com 80 a 100 pessoas na lida, a maioria homens africanos. Entre plantar, limpar, colher e transportar, as funções eram distribuídas de modo que cada escravo cumprisse uma parte, mas só o engenho fizesse açúcar. Isso mesmo, no Brasil Colônia já havia uma espécie de “fordismo” tropical. Surgem cargos como mestre-de-açúcar e caldeireiro, que podiam ganhar recompensas e até salários. Escravos mulatos ou nascidos no Brasil, conhecidos como crioulos, eram favorecidos na disputa desses postos, em relação aos africanos, vindos, principalmente, da Costa da Mina, noroeste do continente, e região de Angola. “A mão de obra escrava foi a força motriz dos principais ciclos econômicos do país”, afirma Gustavo Acioli, doutor em História Econômica pela USP. Em 1700, um negro adulto (de 14 a 45 anos) custava cerca de 100 mil-réis. Mas o valor variou conforme a demanda nos vários setores, em especial açúcar, algodão e café.

Segundo afirma Stuart Schwartz, historiador da Universidade de Yale, no livro Escravos, Roceiros e Rebeldes, “o que os agricultores ofereciam como incentivos, para alcançar seus objetivos, podia ser interpretado pelos escravos como uma oportunidade que talvez lhes melhorasse a vida”. Os escravos do açúcar tinham possibilidades mínimas de conquistar algum benefício, mas se agarravam a essas chances, submetidos à péssima condição que limitava sua expectativa de vida, no fim do século 18, a 23 anos, em média. As punições incluíam o chicote, as máscaras de flandres, o tronco, entre outras, mas eram raras, porque afetavam o rendimento do escravo e, de quebra, o do engenho.

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A situação dos escravos não era a mesma em todo o país. No século 18, os homens trazidos para procurar fortunas de ouro e diamantes no leito dos rios de Minas Gerais levavam uma vida bem diferente daquela dos engenhos de cana. Uma mina empregava no máximo 30 escravos. Curvado, com os pés na água, o negro procurava as sonhadas pedras por horas a fio, parando somente para comer e fumar. Mas, se vivia mais isolado, o mineiro tinha mais mobilidade. “A mineração, mais que outros setores econômicos, propiciou aos escravos maior acesso à alforria e alguma mobilidade social graças à possibilidade de reunir um pecúlio”, escrevem os autores de Trabalho Compulsório e Trabalho Livre na História do Brasil. Uma única pepita podia comprar a liberdade. Isso estimulou outra característica peculiar da escravidão brasileira – a existência dos senhores negros, libertos que conseguiam acumular patrimônio e ter seus próprios escravos. Embora fosse a minoria da minoria (no Rio ou em Salvador, as alforrias não passavam de 2% da população), isso acontecia, especialmente nos centros urbanos e nas minas.

Em 1888, o Brasil se tornou o último país do Ocidente a abolir a escravidão. E os ex-escravos tiveram de se virar para serem absorvidos pela sociedade e sobreviverem. Dependendo da área em que atuavam – nas minas, na lavoura, nos ofícios urbanos -, foram integrados de forma diferente ao mercado. Alguns trabalhadores da cidade tiveram a grande vantagem de dominar um ofício e, em alguns casos, contar com uma clientela. No campo ou na capital surgiram os contratos que repetiam o clientelismo, o compadrio, quando não a própria violência física. “O caso exemplar é das escravas domésticas, que mantiveram suas relações com as patroas”, afirma a historiadora Ynaê Santos, pesquisadora da escravidão urbana.

Finalmente, muito dessa história se perdeu. Então ministro da Fazenda, Rui Barbosa mandou queimar, em 14 de dezembro de 1890, os registros de posse e movimentação patrimonial envolvendo todos os escravos, o que foi feito ao longo de sua gestão e de seu sucessor. A razão alegada para o gesto teria sido apagar “a mancha” da escravidão do passado nacional. Mas especialistas afirmam que Rui Barbosa quis, com a medida, inviabilizar o cálculo de eventuais indenizações que vinham sendo pleiteadas pelos antigos proprietários de escravos. Apenas 11 dias depois da Abolição, um projeto de lei foi encaminhado à Câmara, propondo ressarcir senhores dos prejuízos gerados com a medida. Mas, mesmo sem os papéis, a escravidão deixou marcas duradouras e traços para sempre visíveis na História do país.

Rebeldes de Santana: direitos por escrito
Revoltosos de Ilhéus redigiram uma pauta com 19 exigências para melhorar suas condições de trabalho

“Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação”. Essa era uma das 19 reivindicações apresentadas pelos escravos ao dono do engenho de Santana, em Ilhéus, na Bahia, onde trabalhavam cerca de 300 homens. O levante aconteceu em 1789, quando seus integrantes mataram o supervisor e fugiram. Encurralados, propuseram um inusitado tratado de paz = escrito. Pesquisadores acreditam que o grau de alfabetização dos escravos dificilmente ultrapassou 1%. Mesmo assim, esse grupo conseguiu redigir seus objetivos. Entre eles, a redução da jornada de trabalho (menos 30% da colheita diária), folga nas sextas e sábados, mais tempo para dedicar aos seus lotes de terra e ao cultivo de suas hortas, transporte para levar seus produtos ao mercado, tratamento especial para as mulheres (menos tempo na lida) e até o controle do engenho, além do direito de recusar certas tarefas tidas como sujas, que deveriam ser delegadas aos “pretos minas [modo generalizado de chamar os africanos, para diferenciá-los dos nascidos no Brasil]”. No pedido final, a esperança: “Poderemos brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos, sem que nos impeça e nem seja preciso licença”. Os negros de Santana não pediam explicitamente o fim da escravidão, nem mencionavam os castigos corporais, mas defendiam melhores condições de trabalho e disponibilidade para os esforços destinados à compra da liberdade. Não adiantou. O proprietário fingiu aceitar o tratado, prendeu e vendeu a maior parte de seus autores, liderados pelo escravo Gregório Luís. Embora fosse considerado um bem, como um animal, o escravo era julgado como homem quando cometia um crime. A maioria das rebeliões escravas ocorreu nas cidades – notadamente na Bahia. “Escravos urbanos tinham mais espaço para se encontrar e se organizar”, diz a historiadora Ynaê Santos.

Terra de branco
A casa-grande era fortaleza, banco, escola e hospedaria

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FÉ CEGA

Na sala as orações eram feitas em latim. Os africanos reinterpretavam: Resurrexit sicut dixit (“ressuscitou, como havia dito”) virou, na prática, “reco-reco Chico disse”.

INOCÊNCIA PERDIDA

Crianças brancas e negras andavam nuas e brincavam juntas até os 5 ou 6 anos. Tinham os mesmos jogos, baseados nos mesmos personagens fantásticos do folclore africano. Mas, aos 7 anos, a criança negra enfrentava sua condição e precisava começar a trabalhar.

ESCOLA PROIBIDA

Não havia escola para escravos e forros, mas, algumas poucas vezes, aqueles que trabalhavam na casa grande, bilíngues na prática, iam à sala de aula.

A COXINHA

A cozinheira era muito valorizada na casa-grande. Conquistou o gosto dos europeus e brasileiros para os pratos de origem africana como vatapá e caruru, comuns na mesa patriarcal do Nordeste. A cozinha ficava num anexo da casa, separada dos cômodos principais por depósitos ou áreas internas.

Salários e indenizações
Ex-escravos receberam pagamento depois da abolição nas Antilhas

Busca de Cursos

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Nas colônias britânicas, a abolição teve tratamento jurídico e social bem diferente do Brasil. Ficou estabelecido nas Antilhas que os trabalhadores ficariam com seus antigos senhores em troca de um soldo, durante quatro anos. E os proprietários das plantações foram indenizados. “O saldo da abolição nas Antilhas britânicas foi inegavelmente positivo para os descendentes de africanos que foram libertados, por causa da atitude dos próprios ex-escravos. Sempre que possível, eles se recusaram a trabalhar sob condições semelhantes às vigentes durante a escravidão, lutando para se converterem em camponeses”, afirma o historiador Rafael Marquese, da Universidade de São Paulo. Se a Inglaterra agiu assim por consciência social ou interesse econômico é uma questão polêmica. Por um lado, é sabido que a Revolução Industrial, que vigorava desde o século 18, pedia consumidores para a produção em larga escala. Por outro lado, já havia na Europa a propagação de um sentimento abolicionista. Segundo Marquese, “o que estava na cabeça dos antiescravistas que militavam na Grã-Bretanha não era simplesmente a ampliação do mercado consumidor no mundo colonial, mas uma transformação mais ampla de ex-escravos em agentes econômicos disciplinados conforme a lógica do mercado, segundo os moldes prescritos pelo pensamento liberal”. Sob essa perspectiva, Adam Smith já advertia, em A Riqueza das Nações, que a escravidão era contraproducente, pois homens livres trabalhavam mais e melhor.

A senzala
Um único espaço se destinava ao lazer e sono de todos os escravos

VISITA ÍNTIMA

Normalmente, divisões internas da senzala separavam homens e mulheres. Mas, algumas vezes, era permitido aos poucos casais aceitos pelo senhor morarem em barracos separados, de pau-a-pique, cobertos com folhas de bananeira.

ROÇA

Aos domingos, os escravos tinham direito de cultivar mandioca e hortaliças para consumo próprio. Podiam, inclusive, vender o excedente na cidade. A medida combatia a fome do campo, pois a monocultura de exportação não dava espaço a produtos de subsistência.

HORA DO TAMBOR

Quando a noite caía, o som dos batuques e dos passos de dança dominava a senzala. As festas e outras manifestações culturais eram admitidas, pois a maioria dos senhores acreditava que isso diminuía as chances de revolta.

Salvador de pé no chão
Na primeira capital do Brasil, quase metade da população era escrava

DOCES E CRIANÇAS

Forras quituteiras faziam doces de tabuleiro e rivalizavam com as receitas das escravas que pilotavam as cozinhas das senhoras. Além de atrair clientes, elas tinham de cuidar dos filhos, brincando à sua volta. Pelas ruas da cidade, havia crianças aos montes e muito barulho.

ESPECIALIZADOS

Com a expansão das cidades, multiplicam-se escravos urbanos em ofícios especializados, como pedreiros, vendedores de galinhas, barbeiros e rendeiras. Os carregadores zanzam de um lado a outro, levando baús, barris, móveis e, claro, brancos.

CADA UM NO SEU QUADRADO

Nas esquinas, forros e escravos de mesmas etnias ou ofícios se reuniam à espera de clientes. Eram os “cantos”, agrupamentos estimulados pela administração pública, que instigava hostilidades entre os negros para evitar a associação em massa contra a elite branca.

Saiba mais

LIVROS

Escravos, Roceiros e Rebeldes, Stuart Schwartz, Edusc, 2001

O historiador norte-americano analisa em que medida os escravos conseguiam (ou não) organizar suas vidas.

Trabalho Compulsório e Trabalho Livre na História do Brasil, Ida Lewkowicz, Horacio Gutiérrez, Manolo Florentino, Coleção Paradidáticos, Unesp, 2008

Estudo das estruturas de trabalho no Brasil, através dos ciclos da cana, do café e do ouro.

Ser Escravo no Brasil, Kátia de Queirós Mattoso, Brasiliense, 2003

Informações sobre a rotina dos escravos e os processos de alforria no Brasil, especialmente na Bahia.

Casa-Grande e Senzala, Gilberto Freyre, Global, 2005

Clássico da sociologia, descreve a formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, com análise detalhada de um engenho de açúcar pernambucano.

SITE

www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br
Portal do Arquivo Nacional sobre a história luso-brasileira.

Post-Scriptum

A escravidão no Brasil
Quatro milhões de africanos foram a força motriz da nação

Nos meados do século 16, a introdução da cana-de-açúcar encadeia a escravidão africana na América portuguesa. Trocas comerciais com o golfo de Guiné e Angola consolidam a importação de africanos. Persistindo ainda em São Paulo e na Amazônia, a escravidão indígena torna-se secundária na segunda metade do século 17. O crescimento constante do tráfico negreiro dá origem às fugas de escravos, ampliando a repressão contra os quilombos em Palmares e noutras regiões. Segundo uma lei régia de 1741, todo grupo com mais de cinco escravos fugidos, ou suspeitos de fuga, era considerado um quilombo, arriscando-se, desde logo a ser massacrado ou reduzido à escravidão por capitães de mato.

Nas cidades, diversificam-se os empregos para escravos – artesãos, vendedores ambulantes – usados por seus senhores ou transformados em “escravos de ganho” e alugados a terceiros. Mediante cláusulas testamentárias de proprietários ou concessões para que os escravos pudessem comprar sua própria liberdade, as alforrias se multiplicam. Submetida à vontade dos senhores, a promessa de alforria também funcionava como um fator de controle e de exploração dos escravos.

Depois da Independência, o Brasil apresenta-se como o único país independente das Américas que pratica o tráfico de africanos. Proibido em 1831, o tráfico prossegue ilegalmente até 1850. De 1550 a 1850 desembarcaram cerca de 4 milhões de escravos, transformando o Brasil no maior país negreiro das Américas.

Tais circunstâncias explicam as três características do escravismo brasileiro: a) a presença de donos de escravos em todas as camadas da população livre, tanto entre os fazendeiros como entre as famílias remediadas; b) a extensão do escravismo nas cidades; c) a prática difundida de alforrias.

Com 266 mil habitantes em 1849, dos quais 110 mil eram escravos (41,3%), o Rio de Janeiro possuía a maior concentração urbana de escravos das Américas. Em 1871 é votada a Lei do Ventre Livre , decretando a liberdade dos filhos das escravas nascidos. Todavia, o efeito da lei é diminuído pelo dispositivo assegurando aos senhores o usufruto desses indivíduos até a idade de 21 anos. O primeiro recenseamento nacional, de 1872, mostrou que o país tinha 9 915 000 habitantes, entre os quais 1 509 000 escravos (15,2% da população). Em 1885, a Lei dos Sexagenários decretava a liberdade dos escravos com mais de 60 anos, idade que poucos atingiam na época. Entretanto, tomava corpo um movimento abolicionista, presente no Parlamento, no corpo de magistrados e de advogados, assim como nos setores radicais urbanos, pregando o fim da escravidão. Ao mesmo tempo, aumentava a resistência dos escravos trazidos das zonas rurais estagnadas do Nordeste para as fazendas de café do Centro-Sul, onde a cadência do trabalho era mais dura. A convergência entre o movimento abolicionista nas cidades e as revoltas de escravos no interior do estado de São Paulo acelera a crise do sistema.

No dia 13 maio de 1888, o Parlamento vota a Abolição imediata, sem indenização para os proprietários de escravos. Assim, o Brasil será o último país americano a extinguir a escravidão. Ao mesmo tempo em que perdia o apoio de muitos fazendeiros opostos à Abolição, a monarquia não conseguia limitar o avanço dos republicanos no setor urbano: um ano mais tarde ocorre a proclamação da República. Na realidade, a maioria dos republicanos havia pactuado com os fazendeiros, isolando a fração dos abolicionistas, composta tanto por monarquistas quanto por republicanos, que defendia uma reforma agrária, visando acabar com “a escravidão e com os males que a escravidão criou”, como escreveu o líder abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco.

Luiz Felipe de Alencastro Historiador, diretor do Centro de Estudos Brasileiros e do Atlântico Sul da Universidade de Paris-Sorbonne.

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Escravos: povo marcado
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