Juliette, Gil e Arthur: o BBB21 e a jornada do herói (e da heroína)
Assim como na teoria de Campbell, participantes saem em uma missão, enfrentam obstáculos, superam tentações e descobrem a si mesmos no reality show
O Big Brother Brasil 21 termina na noite desta terça batendo recordes de audiência e repercussão – ao ponto de fazer sombra para a edição de 2020, que fez o programa renascer e ganhar certo ar cult.
Várias são as tentativas de explicar o fenômeno que, ao longo de 100 dias, nos colocou na frente da TV – e na frente da telinha do Twitter. A mais corrente é a pandemia, que nos deixa em casa a maior parte do tempo, o que favorece a audiência da TV aberta, até então em declínio.
Há outras hipóteses: a escalação do elenco, a criatividade da equipe do programa em criar mecanismos que mantêm o interesse do espectador, a edição de cada episódio. Afinal, o BBB não é apenas um fenômeno de audiência e faturamento, mas de repercussão, engajamento e fidelidade do público – quem não ficava ansioso às quintas, domingos e terças, dias em que o jogo da semana era definido? Quem não corria para o pay per view ou as câmeras ao vivo da casa tão logo o programa acabasse na TV Globo para ver a repercussão de um paredão, uma saída ou liderança?
Não podemos, no entanto, esquecer que o BBB, como as séries e as telenovelas, oferece uma narrativa seriada, na qual acompanhamos não apenas uma sucessão de acontecimentos, mas também a forma como esses eventos modificam as personagens (guardem esta informação, voltaremos a ela!).
Em 2020, o que prendeu o público à TV e às redes sociais foram basicamente duas narrativas. A sororidade das participantes em confronto com os chamados chernoboys e a relação de Prior e Babu.
Excluídos do grupo das “fadas sensatas”, os participantes tiveram que ter estratégia e cumplicidade para sobreviver em minoria dentro da casa. Não chegaram à final, mas marcaram a edição – e seguem populares fora do programa.
Quem venceu foi a médica anestesista Thelma Assis, a Thelminha. Firme e serena, era a única participante a transitar entre o grupo das fadas e dos rapazes, por sua amizade com Babu. E a única do grupo pipoca – ou seja, dos participantes com poucos seguidores – a chegar à final. Esses fatores e a pandemia, que trouxe à cena os profissionais da saúde, ajudaram a levá-la à merecida vitória – na opinião deste que vos escreve.
A edição de 2021, no entanto, diferiu nesse aspecto. Embora a questão étnica e de orientação sexual e de gênero tenham estado presentes – causando discussões e bem-vindas ondas de indignação e solidariedade – o BBB 21 foi mais uma edição de personagens do que de temas. E nisso ela difere de 2020.
Ao longo desses 100 dias, o que acompanhamos foi, na verdade, diferentes jornadas de heróis e heroínas.
Heróis? Heroínas? Os participantes do BBB são heróis e heroínas?
De certo modo sim. Esse conceito – a jornada do herói – foi desenvolvido na década de 1980 pelo antropólogo Joseph Campbell. Estudioso dos mitos de diversas culturas ao longo da história, o autor sintetizou as narrativas de diferentes povos nas “17 etapas do monomito” (que vem a ser a jornada do herói) – a circunferência das histórias, que tÊm início com a partida do herói, ao ser chamado para uma missão que, inicialmente, recusa, e seu regresso, transformado pela experiência. Os 17 passos descritos por Campbell você encontra aqui.
Esse conceito seria posteriormente atualizado por outros autores, como Christopher Vogle. Há, ainda, um sem número de estudiosos a dissecar estruturas narrativas e a jornada de personagens, fundamentais para a compreensão da forma das histórias – que jamais devem ser reduzidas a fórmulas. Afinal, não há receita para escrever, mas instrumentos que ajudam a criar e a analisar o texto.
Mas o que, afinal, isso tem a ver com o BBB?
Ora, foi isso que nós acompanhamos nesses meses – e vamos provar agora a partir da avaliação de três participantes. Mas antes precisamos entrar no acordo da “suspensão da descrença”, que nada mais é que um termo cunhado pelos ingleses (suspension of disbelief) para designar o pacto que existe entre uma história e seu leitor, ouvinte, espectador. A partir do momento em que ela começa a ser contada, devemos esquecer o mundo aqui fora e nos centrarmos naquele universo que nos é apresentado – e suas regras.
Por isso, vamos avaliar em linhas gerais a jornada desses três personagens do BBB baseando-se nesses estudos e a partir das informações dadas por eles e suas histórias DENTRO da casa, deixando de lado suas vidas externas – que, ademais, não nos dizem respeito.
Arthur Picoli de Conduru
O crossfiteiro passou metade do reality fazendo jus às características tão criticadas em homens brancos e héteros. Era frio com a namorada, a atriz Carla Diaz – ao ponto de não socorrê-la em uma prova. Na hora de imunizar um participante escolheu Projota, seu amigo, em detrimento da namorada – que chegou a pedir para ser indicada no lugar dele. Em sua estrada de provas, reagia de maneira agressiva. Sem Carla e Projota, viu-se sozinho e teve que encarar seu desafio: se reinventar dentro do jogo. Aproximou-se da cantora Pocah, vivendo seu encontro com a deusa, fundamental para sua reinvenção. Revelou um lado mais bem humorado e ganhou a simpatia de parte do público por suas posições políticas – e defesa ao respeito de medidas restritivas de combate à pandemia. Ofereceu o ombro a Gil, quando ele lhe contou da rejeição que sofria por parte do pai por ser gay, e criou uma amizade bem humorada com o participante. Aos poucos, o rapaz durão foi amolecendo – a ponto de até mesmo selar as pazes com seu principal rival, Fiuk. Como ele mesmo disse, terminou a jornada, ao ser eliminado, deixando o “Arthur do passado”, que precisava ser sempre duro, para trás. Após sair para cumprir sua missão, o herói sempre volta transformado, com mais sabedoria.
Gilberto Nogueira, o Gil do Vigor
O doutorando em economia, foi o primeiro participante a entrar na casa e fez as honras para boa parte dos participantes. A sua saída, no último domingo, foi também para muitos espectadores o fim do programa. Fã do BBB, Gil foi o primeiro a decifrar o jogo, junto de sua companheira Sarah: percebeu que o grupo que acabou conhecido como “Gabinete do Ódio” – formado por Karol Konká, Lumena, Nego Di e Projota – não tinha fora da casa a mesma força que internamente, com a saída do ator Lucas Penteado. A partir daí, com Sarah e Juliette, Gil conseguiu ajudar a desmontar o grupo. No entanto, o sucesso subiu-lhe à cabeça – como também à cabeça de Sarah. Essa foi a tentação que quase tirou o herói Gil de sua missão. A dupla afastou-se de Juliette e aliou-se a participantes como Caio e Rodolffo, popularizados como a Bancada Ruralista. Um comentário considerado preconceituoso da parte de Rodolffo acerca do vestido do Fiuk, porém, trouxe a dupla de volta ao eixo. Mas já era tarde para Sarah. Sem sua principal parceira, Gil reaproximou-se de Juliette, fortaleceu a amizade com Fiuk e estabeleceu um vínculo com Arthur. Em paralelo ao jogo, Gil viveu também um processo de autoaceitação: de família evangélica, rejeitado pelo pai, Gil desabrochou sua identidade gay da casa. Foi o primeiro participante a beijar outro homem, teve uma festa de temática LGBT, discutiu suas dores, confrontou seus fantasmas – e deu um segundo beijo – em Fiuk. Na jornada em busca de R$ 1,5 milhão, encontrou a si mesmo e obteve a maior vitória que um herói pode ter ao fim de sua jornada: a liberdade para viver.
Juliette
A participante nascida em Campina Grande (PB) foi discriminada logo de início por seu sotaque e temperamento, separando-se de seu mundo original de maneira dolorosa. O mais grave é que seu jeito foi atribuído às suas origens geográficas, numa atitude xenofóbica. A exclusão e a discriminação foram os obstáculos na jornada da heroína que, então, aproximou-se de Gil e Sarah. Desentendeu-se com ambos e buscou novas alianças. Foi vítima de acusações e difamações – mas também distorceu histórias e afirmações. Fato é que Juliette enfrentou a discriminação da qual foi vítima, fortaleceu-se e restabeleceu os vínculos com Gil. Em paralelo, ao longo do BBB, viu sua paixão platônica por Fiuk tornar-se um entrevero de comédia romântica – com discussões sobre, por exemplo, o que é e o que não é cuscuz – com direito até a casamento simbólico. Juliette é, hoje, a preferida para ganhar o prêmio, cumprindo seu objetivo final. A participante mais rejeitada dentro da casa, depois de Lucas, termina como a favorita do público. Jornada mais completa não há.