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“Olhos d’água”: resumo da obra de Conceição Evaristo

Confira as principais características do livro que faz parte das leituras obrigatórias da Unicamp

Por Julia Di Spagna
Atualizado em 29 Maio 2023, 15h30 - Publicado em 31 mar 2023, 10h42

A Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) divulgou a lista de obras obrigatórias para os vestibulares de 2024, 2025 e 2026, e um dos livros que será cobrado nas provas durante os próximos três anos é “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo.

Publicada em 2014, a obra é composta por quinze contos que abordam a história de personagens negras silenciadas pelo racismo, pelas imposições econômicas, por condições degradantes de trabalho e pelas questões de gênero. São narrativas curtas sobre crianças, homens e, sobretudo, mulheres. Personagens femininas – mães, idosas, crianças, ex-prostitutas, domésticas – estão sempre no centro do processo de escrita da autora. 

“Olhos d’água” conquistou o 3º lugar na categoria Contos e Crônicas do prêmio de Jabuti, em 2015. A tradicional premiação literária reconhece grandes nomes da literatura nacional.

Pensando em quem vai prestar o vestibular ou deseja saber mais sobre a obra, o GUIA DO ESTUDANTE conversou com Gustavo Brotas, professor de literatura do Poliedro Colégio, e Jéssica Dorta, professora de literatura do Colégio Oficina do Estudante. Eles ajudaram a destrinchar as principais características dos contos presentes em “Olhos d’água”, o contexto da obra como um todo e como o livro pode ser cobrado pela Unicamp. 

Os contos de “Olhos d’água”

Enquanto os nove primeiros contos da obra são protagonizados por mulheres, que, de alguma maneira, mantém o controle sobre suas próprias vidas, os quatro contos da sequência apresentam protagonistas masculinos que não conseguem resistir à marginalização social e por isso morrem todos violentamente. 

No penúltimo conto, chamado “A gente combinamos de não morrer”, o leitor encontra uma multiplicidade de vozes. Os diferentes narradores parecem mostrar não apenas que a periferia precisa ser ouvida, mas também que os indivíduos que habitam esse espaço não formam um bloco homogêneo e devem ser percebidos a partir de suas múltiplas perspectivas e subjetividades, que foram estabelecidas nos diferentes lugares construídos por cada um dos narradores. 

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No conto que fecha o livro, Conceição Evaristo retoma a trajetória das personagens femininas em busca de uma vida melhor. Nessa última narrativa, a partir do nascimento da menina Ayoluwa, chamada de “a alegria do nosso povo”, a comunidade volta a ter esperança, mas sem fechar os olhos para todas as dificuldades que ainda precisarão ser enfrentadas.

Todos os contos presentes na obra apresentam histórias de pessoas negras que tiveram suas trajetórias atravessadas pela desigualdade racial e social existente na sociedade brasileira. São frequentas nas narrativas questões como a fome, o abandono e a violência.

A professora Jéssica Dorta destaca, no entanto, que embora a coleção seja marcada por situações de extrema vulnerabilidade, as relações estabelecidas entre as personagens não são definidas apenas por condições degradantes. Um exemplo seria o conto homônimo à obra, em que a narradora descreve os olhos da mãe como “rios caudalosos”.

“Nesse rio, além de miséria, correm águas de alegria e afeto. Assim, mesmo em meio à desesperadora fome, a filha recorda-se com detalhes dos momentos da infância em que a mãe contornou as dificuldades com amor e presença”, explica. 

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Ainda que as narrativas apresentem um recorte racial específico – inclusive com frequentes referências à cultura e religiões de matriz africana –, é inegável que as experiências descritas por Conceição Evaristo (muitas delas vivenciadas pela própria autora) vão além da existência da pessoa negra. Os contos da obra relatam experiências universais de dor, opressão e preconceito.

Ainda assim, o tom é longe de ser conformista. Como destaca a professora, “as narrativas conduzem e convidam o leitor a um caminho de resistência, luta e esperança.”

Conceição Evaristo

A história da autora impacta diretamente os temas da obra “Olhos d’água”. Nascida em 1946 em uma favela na cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Maria da Conceição Evaristo justifica a escolha por aproximar tão diretamente a voz autoral da voz das personagens. 

“Eu sempre tenho dito que a minha condição de mulher negra marca minha escrita de forma consciente, inclusive. Faço opção por esses temas por escrever dessa forma. Isso me marca como cidadã e me marca como escritora, também”, disse em entrevista ao jornal O Globo

Assim, a escritora cidadã cumpre, por meio de sua escrita, o papel de ecoar a voz daqueles que foram historicamente excluídos da vida dos centros socioeconômicos.

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Lembrando que por mais que a literatura nacional esteja repleta de personagens negros, a maior parte deles foi escrita por autores brancos. “Nesse sentido, Conceição Evaristo compreende a Literatura como uma possibilidade de preencher as lacunas históricas construídas pela colonialidade, pois permite que as narrativas sejam contadas da perspectiva de quem, de alguma forma, as vivenciou”, destaca a professora Jessica Dorta. 

Essa é a grande marca das obras da escritora: a escrevivência

O conceito de escrevivência criado por Conceição Evaristo

A partir da aglutinação das palavras “escrever” e “vivência”, o termo foi criado pela escritora para se referir a uma escrita que aborda o relato de suas memórias pessoais e coletivas. Seu texto é a tradução de suas experiências pessoais – vem de um local de quem as viveu e ainda vive. 

A obra trata de uma reflexão sobre a experiência étnica e sobre a questão de gênero. Dessa forma, a prática de escrita carrega a força da ancestralidade de mulheres negras para a formação da identidade cultural brasileira, por meio também da valorização de palavras provenientes de idiomas africanos. 

Em entrevista à TV Brasil, a autora discorre sobre o conceito: “Nós não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário, é para acordá-los dos seus sonos injustos. Essa escrevivência toma como mote de criação justamente a vivência, ou a vivência do ponto de vista pessoal mesmo, ou a vivência do ponto de vista coletivo.”

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Como o livro pode ser cobrado pela Unicamp? 

Segundo os professores, os estudantes precisam estar atentos aos aspectos temáticos, à análise do enredo e do contexto da obra, e aos elementos de linguagem na obra “Olhos d’água”.

“Em primeiro lugar, é fundamental observar que se trata de um conjunto de narrativas engajadas, uma vez que a escritora apresenta uma forte crítica social e uma intensa denúncia das injustiças e desigualdades no Brasil contemporâneo, as quais marginalizam historicamente as comunidades afrodescendentes. Sem idealizações ou sentimentalismos, o foco está na experiência diária com o racismo e as consequências devastadoras que ele provoca em todos os âmbitos da vida da população negra”, explica Gustavo Brotas, professor do Poliedro. 

Além disso, há uma valorização de elementos das culturas de matriz africana, como os nomes dos personagens e a espiritualidade. Com relação aos aspectos da linguagem dos contos, ocorre um intenso uso da oralidade nas narrativas e a recorrência de coloquialismos, como se observa inclusive no título do conto “A gente combinamos de não morrer”. 

Também é importante destacar o fato de que a autora discute questões muito sensíveis da sociedade e da história brasileira, sem renunciar a uma prosa altamente poética, recheada de metáforas e da expressividade sonora das palavras.

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Além desses fatores sobre a obra em si, a professora Jéssica Dorta, da Oficina do Estudante, lembra que o vestibular da Unicamp é marcado por uma preocupação explícita com a formação cidadã e o letramento crítico dos alunos – não por acaso obras como “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, e Sobrevivendo no Inferno”, de Racionais MC’s, já foram leituras obrigatórias. “Sendo assim, é imprescindível que os estudantes percebam as dimensões sociais e culturais da obra, por meio dos enredos e das personagens, e o convite que ela faz para a união em prol de uma sociedade mais justa e livre para todas as pessoas”, alerta.

“Olhos d’água” também pode ser comparada com outros livros da lista da Unicamp. Por exemplo: é possível estabelecer paralelos entre a obra e o livro “Niketche: uma história da poligamia”, da moçambicana Paulina Chiziane. Além disso, a nova lista conta um conjunto de dez canções do sambista Cartola. Considerando que o samba é um gênero musical brasileiro e de origem africana, vale ficar atento às possibilidades de aproximação entre a escritora Conceição Evaristo e o compositor Cartola.

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