Foi em outubro de 1897 que o jornalista, engenheiro e militar Euclides da Cunha descobriu um sertão muito diferente do que ele e outros colegas costumavam relatar nas páginas dos jornais da capital. Enviado como correspondente ao nordeste da Bahia pelo jornal O Estado de S.Paulo, o autor passou quase dois meses observando de perto o conflito de Canudos. A cobertura rendeu, em 1902, o livro “Os Sertões”, hoje considerado o primeiro livro-reportagem brasileiro.
Antes da experiência, Euclides já havia defendido ferrenhamente em artigos que o movimento de Canudos era monarquista e tinha como único objetivo derrubar a república, mas revê essa posição em Os Sertões, depois de conhecer as condições de vida dos sertanejos e a organização da comunidade liderada por Antônio Conselheiro.
Em sua terceira e última parte, Os Sertões traz um relato minucioso da Guerra de Canudos, considerado por críticos literários um estudo historiográfico. Mas, antes disso, nas duas primeiras partes do livro, Euclides situa o leitor sobre dois elementos decisivos para o entender a Luta: A Terra e o Homem.
Valendo-se de suas habilidades militares e até científicas, ele descreve na primeira parte a flora, a fauna, o relevo e outros aspectos do sertão nordestino, fazendo um balanço final da seca que assola a região. Na parte central do livro, fala sobre o sertanejo que padece sob essas condições e o trecho é visto como um estudo antropológico e sociológico.
É importante mencionar que a formação intelectual de Euclides era determinista (teoria filosófica que pregava que o meio e a raça determinam o indivíduo) e positivista (corrente que defendia ideais de moral e progresso), o que sem dúvidas influenciou a forma como ele descreveu os habitantes e sua relação com a terra. O racismo é especialmente latente nessa parte da obra e o autor reafirma diversas vezes que o “mestiço” seria uma raça biologicamente inferior às outras.
Vivo em contradições, Os Sertões consegue ser, ao mesmo tempo, um livro preso e a frente do seu tempo, já que embora tenha aderido a correntes racistas e deterministas em voga na época, denunciou a o exército nacional e a República por dizimar Canudos e assassinar milhares de seus habitantes.
A Guerra de Canudos
Antecedentes
A pequena comunidade de Canudos, no nordeste baiano, já existia desde o século 18, mas viveu seu auge apenas no século seguinte. A partir de 1893, o vilarejo passou por um crescimento vertiginoso com a chegada de uma figura que marcaria para sempre a história do lugar. Antônio Conselheiro era o apelido de Antônio Vicente Mendes Maciel, que há anos vagava pelos sertões pregando valores sociais e cristãos.
Tido como profeta por seus seguidores, Conselheiro criticava a recém instaurada república pelo seu afastamento da Igreja e abarcava também em seus discursos as condições miseráveis de vida dos sertanejos e o pouco auxílio que recebiam dos governantes.
A República, na verdade, aparecia no sertão quase que unicamente com um objetivo: a cobrança de impostos. A tudo isso, associava-se ainda o histórico de concentração de terras improdutivas e a seca da região. Com seu discurso messiânico, Antônio Conselheiro passou a atrair cada vez mais gente para a região de Canudos, vivendo sob regras e princípios que se descolavam cada vez mais da República. Ele rebatizou o povoado de Belo Monte.
Incomodados com o crescimento da vilarejo e com a ameaça que seus moradores poderiam representar, os latifundiários da região moldaram pouco a pouco a opinião pública fazendo acreditar que o plano de Antônio Conselheiro era construir um exército para restaurar a monarquia. Em 1896, um episódio aparentemente banal desencadeia a Guerra de Canudos.
Estopim e as quatro expedições
Em outubro de 1896, Conselheiro encomenda uma remessa de madeira de Juazeiro, para a construção de uma igreja. Mesmo tendo sido paga, a encomenda não chega, e espalham-se rumores que de que os sertanejos de Canudos pretendiam buscá-la a força. Cem soldados do estado da Bahia são enviados para esperar a chegada dos seguidores de Conselheiro, mas quando estes não chegam, decidem partir para o vilarejo.
No meio do caminho, os “conselheiristas” se encontram com os militares e acontece o conflito da primeira expedição de Canudos. Apesar das tropas do governo terem “vencido”, já que foram 150 sertanejos mortos contra 10 do outro lado, o exército não tinha mais forças para atacar Canudos.
Depois dessa, foram necessárias mais três expedições até que o exército de fato derrotasse Canudos. Contabiliza-se que entre 20 e 25 mil sertanejos tenham sido mortos, sem distinção entre crianças, idosos e mulheres. Uma parte deles chegou a se entregar sob a promessa de perdão da República, mas, depois de presos, também foram assassinados. As casas do vilarejo foram destruídas e queimadas.
O conflito só acaba em 5 de outubro, quando os últimos defensores morrem. Depois disso, o corpo de Antônio Conselheiro, morto há dias em decorrência de uma desinteria, foi encontrado e sua cabeça decepada para ser levada como troféu.