Revolta da Vacina convulsiona o Rio contra reforma urbana autoritária
Há 116 anos, a população da então capital federal tomou as ruas numa rebelião contra medidas abusivas que atingiam a população mais pobre
O Rio de Janeiro era a capital federal quando, em novembro de 1904, foi palco de uma das maiores revoltas urbanas ocorridas no Brasil: a Revolta da Vacina. A população tomou as ruas por vários dias em manifestações que acabaram em violentos conflitos com a polícia. O estopim foi uma medida adotada pelo então presidente, Rodrigues Alves: a vacinação obrigatória contra a varíola. Mas a raiz da revolta era a reurbanização da cidade, que removeu parte da população à força para bairros distantes. Na época, o Rio contava com 800 mil habitantes, e a cidade passava constantemente por surtos de doenças infectocontagiosas, como febre amarela, varíola e peste bubônica. Na tentativa de pôr fim a esse quadro, o presidente pôs em marcha um ambicioso plano de saneamento e higienização. O projeto, porém, envolvia medidas que prejudicavam a população mais pobre.
O paulista Rodrigues Alves havia assumido a Presidência em 1902. Seu programa incluía modernizar o porto e a cidade, atacando o maior mal da capital: a disseminação de doenças. A situação era tão crítica que, durante o verão, os diplomatas se refugiavam em Petrópolis (RJ) para fugir do risco de contágio. O Rio de Janeiro tinha então o título de “túmulo dos estrangeiros”. Para a elite local, o projeto sanitário deveria ser executado a qualquer preço.
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Bota-abaixo
O presidente nomeia dois assistentes para a reforma urbana: o engenheiro Pereira Passos, como prefeito, e o médico sanitarista Oswaldo Cruz, como diretor de Saúde Pública. Cruz assume em março de 1903. Em nove meses, são derrubados 600 edifícios e casas para abrir a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco). Para aplicar os preceitos higienistas, foram removidas milhares de famílias pobres, transfigurando por completo a paisagem do centro. A ação, conhecida como “bota-abaixo”, empurrava os mais pobres para periferias e morros mais distantes.
Para combater a febre amarela, transmitida por mosquitos, organiza-se uma grande equipe de “mata-mosquitos”. Os funcionários tinham o poder de invadir os lares cariocas. No primeiro semestre de 1904, foram feitas 110 mil visitas domiciliares, e interditados 626 edifícios e casas. A população contaminada era internada em hospitais. Para controlar a peste bubônica, a prefeitura promove a “guerra aos ratos”, e chega a comprar os animais mortos de quem os caçava. Já se sabia que eram as pulgas dos roedores as transmissoras da doença.
Por seu caráter autoritário e invasivo, desrespeitando lares e despejando famílias, a nova política sanitária gerou grande descontentamento popular. Batizadas pela imprensa de Código de Torturas, as medidas desagradaram também líderes políticos, que reclamavam da violação de direitos individuais.
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Rebelião nas ruas
A medida higienista mais polêmica foi tornar obrigatória a vacinação contra varíola, aprovada em 31 de outubro de 1904. Em 10 de novembro, devido à proibição de reuniões públicas, a polícia investe contra estudantes que pregavam resistência à vacinação. Foram recebidos a pedradas. No dia seguinte, forças policiais e militares recebem ordens para reprimir um comício contra a vacinação, e o confronto se generaliza para outras áreas do centro, levando ao fechamento do comércio. Nos dias subsequentes, os conflitos se agravam. Há trocas de tiros e a população incendeia bondes, quebra postes de iluminação e vitrines de lojas, invade delegacias e um quartel.
A revolta durou seis dias e só arrefeceu quando o governo recuou e cancelou a vacinação obrigatória.
Em 14 de novembro, 300 cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha tentam depor o presidente, num golpe armado por monarquistas e grupos de oposição. Recebem o apoio de outras forças militares. No Botafogo, encontram-se com as tropas governamentais. Segue-se um intenso tiroteio e a debandada é geral. Os tumultos persistem no dia seguinte, e continuam os ataques às delegacias, ao gasômetro, às lojas de armas.
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Em 16 de novembro, o governo decreta estado de sítio. Ainda há confrontos em várias partes. Tropas do Exército e da Marinha ocupam bairros populares. O governo acaba por recuar e revoga a obrigatoriedade da vacinação. Mas permanece válida a exigência do atestado de vacinação para trabalho, viagem, casamento e matrícula em escolas, de maneira a dificultar a vida dos que se recusam a ser vacinados.
A revolta deixa um saldo de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 são enviados para a Amazônia. A polícia aproveita os tumultos e recolhe os moradores de rua. São todos enviados para a Ilha das Cobras, espancados, amontoados em navios-prisão e deportados para o Acre a fim de trabalharem nos seringais amazônicos. Muitos morrem antes de chegar ao destino.
Para o regime republicano instaurado havia 15 anos, no qual a participação política da maior parte da população era negada, as manifestações representaram uma reação diante do tratamento autoritário do governo em relação ao povo. Mais que um levante dos cariocas contra medidas sanitárias, a Revolta da Vacina simboliza a resistência popular frente à truculência elitista da República Velha (1889-1930). A vacinação foi mais uma medida para disciplinar a população pobre, vista como obstáculo ao desenvolvimento do país.
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