Testemunha ocular do Holocausto conta sua experiência
“Depois de trabalhar exaustivamente o dia todo, e ter como comida só um prato de sopa que era praticamente água suja, os alemães não nos deixavam dormir".
Se alguém te perguntar, agora, o que foi o Holocausto, o que você vai responder? Provavelmente, em uma definição bem simples, você vai dizer que foi o genocídio de seis milhões de judeus durante a gestão do Partido Nazista na Alemanha. É mais ou menos isso que aprendemos na escola, mas sempre de forma rápida, durante as aulas de Segunda Guerra. Quando eu estava estudando, sempre ficava impressionada com aquilo, sem entender bem como uma coisa tão terrível tinha acontecido em tão pouco tempo. O que eu mais costumava me perguntar era a respeito dos sobreviventes. Como conseguiram resistir aos campos de concentração? O que fizeram de suas vidas depois?
Quando recebi o convite para a pré-estreia do filme “Sobrevivi ao Holocausto”, fiquei muito interessada. No documentário (que estreou em agosto de 2014, mas ficou pouco tempo em cartaz), o polonês Julio Gartner, sobrevivente do Holocausto de 90 anos, foi levado a refazer sua trajetória desde o momento em que a Alemanha invade a Polônia, em 1939, até sua vinda para São Paulo, onde veio morar pouco depois do fim da guerra. Quando soube que o próprio Julio Gartner estaria presente à exibição, quase não me contive – uma mistura de nervoso com excitação. Aquela era uma oportunidade única de conversar com uma pessoa que viveu em primeira mão um dos momentos mais marcantes e assombrosos da História.
No dia, ele chegou pontualmente na hora marcada. Um senhor baixo, de olhos muito azuis, cabelos brancos e um sorriso bondoso no rosto. Quando escolhi uma poltrona para sentar, meu nervoso aumentou de um pulo quando ele sentou bem ao meu lado para assistir ao filme. Para tentar aplacar um pouco da ansiedade, virei para ele e perguntei: “O senhor já assistiu muitas vezes ao filme depois de pronto?”, ao que ele respondeu, sorrindo: “Só umas quatro vezes. Ainda vou ter que assistir muito mais”. Em seguida, as luzes se apagaram e a viagem começou.
O documentário, dos brasileiros Marcio Pitliuk e Caio Cobra, é a primeira produção cinematográfica que leva um sobrevivente do Holocausto aos locais por onde passou durante os seis terríveis anos de guerra. Julio é acompanhado por Marina Kagan, uma amiga de sua neta que tem mais ou menos a idade dele ao término do conflito. Tudo começa em Cracóvia, cidade polonesa onde Julio viveu até 1939, quando os alemães invadem o país. Seus irmãos fugiram para o leste, mas Julio, então adolescente, permaneceu com os pais sob as restrições cada vez maiores dos alemães. Como a situação se complicava e seus pais se recusavam a ir embora, ele resolveu fugir sozinho e se abrigou em uma pequena aldeia próxima, cujos moradores o alimentavam e permitiam que ficasse escondido em um silo de cereais. Depois de sua fuga, nunca mais viu os pais e sequer soube do que aconteceu com eles.
Depois disso, Julio relata o retorno de um de seus irmãos do exílio e a decisão dos dois de obedecer aos alemães. Como resultado, foram morar no gueto de Cracóvia. Pouco tempo depois, veio a ordem de levar os habitantes do gueto aos campos de concentração. Sua primeira parada foi o campo de Plaszow, comandado por Amon Goeth. Durante a passagem pelo campo, Julio encontra a antiga casa do comandante. “Ele era um sádico. Gostava de ficar na varanda, de onde atirava nos judeus que passassem em frente. Também treinava os cachorros para atacar os prisioneiros”, conta.
Depois, uma nova evacuação, desta vez para o campo de Mauthausen, na Áustria. A viagem terrível, feita de trem, amontoou todos os prisioneiros sem nenhuma higiene ou comida. Chegou a passar 24 horas em Auschwitz, para depois chegar ao destino final, chamado por ele de “academia de destruição do ser humano”. “Em Mauthausen, os generais alemães nos faziam carregar pedras enormes por uma escadaria imensa entalhada na pedreira. Subíamos as escadas com uma pedra, deixávamos lá em cima, para depois pegar outra e descer com ela. Fazíamos isso 10 horas por dia, e depois de dez dias todos estavam mentalmente e fisicamente destruídos. Os que não aguentavam eram atirados lá do alto”, conta.
Foto: Divulgação
Depois de alguns dias, foram transferidos para o campo de Melk, onde trabalhou na construção de túneis. Meses depois, nova transferência: dessa vez, para Ebensee. Faltando cerca de 70 km para o fim da viagem, ele relata que os alemães colocaram os prisioneiros para caminhar o resto do trecho. “Era a Marcha da Morte. Quem estivesse muito debilitado e não aguentasse o trajeto era executado rapidamente.” Chegando no campo, não morreu por pouco. A comida era um único prato por dia de sopa de batata, muito rala. A salvação foi um bombardeio em um trem de carga que passava próximo, carregado de comida: os prisioneiros encarregados de desimpedir a via puderam se alimentar, escondidos, do que encontraram.
Em 7 de maio de 1945, veio a rendição alemã. Na manhã deste dia, ele e os outros prisioneiros do campo acordaram e o encontraram deserto de oficiais alemães. Aos 21 anos e, segundo ele, pesando pouco mais de 30 kg, Julio pôde ir embora da Áustria, indo para a Itália, onde recuperou a saúde, e depois para a França, onde comprou sua passagem para o Brasil. Em São Paulo, casou-se com uma italiana, também judia, com quem teve dois filhos. Depois destes seis anos em que diz que “não viveu”, Julio passou todo o resto de sua vida no Brasil, e nunca quis voltar a morar na Polônia.
Mesmo com uma história tão impressionante, Julio conta tudo com bastante serenidade e não se recusa a responder nem às perguntas que possam sugerir um retorno a lembranças muito amargas: “Eu falo que sou um dos últimos moicanos, porque tem muito poucos sobreviventes na minha faixa etária, ainda mais que tenham condições de falar. Tento divulgar e contar a minha história enquanto puder.” No entanto, segundo ele, algumas passagens ainda são difíceis de reviver. “Hoje, se você é assaltado, sabe que o ladrão vai embora. Se sua casa pega fogo, sabe que os bombeiros vão vir se você chamar. Naquela época, ninguém tinha esperança de salvação. Sabíamos que ninguém viria nos ajudar, não havia voz que gritasse por nós”, explica.
Dos anos vividos nos vários campos de concentração pelos quais passou, Julio lembra-se da estratégia criada pelos alemães para que não houvesse poder de reação dos prisioneiros. “Depois de trabalhar exaustivamente o dia todo, e ter como comida só um prato daquela sopa que era praticamente uma água suja, os alemães não nos deixavam dormir. Depois de uns 20 minutos em que todos adormeciam, começava uma gritaria. Eles acendiam as luzes e as sirenes e entravam em todos os alojamentos gritando ‘Acorda, acorda!’. Depois de alguns dias, a exaustão era completa, não havia chance de ninguém reagir”, conta.
De acordo com o diretor Marcio Pitliuk, essa estratégia fazia parte de um extenso planejamento criado pelos nazistas já no início de sua gestão no governo da Alemanha, em meados de 1933. “O Holocausto foi muito bem planejado. Os campos podiam ter 30 mil prisioneiros para 100 soldados, e a maneira de controlar todas essas pessoas e impedir que fizessem uma revolução ali dentro era destruir a capacidade física e mental de todos. É deixar a pessoa com fome, com sede e cansada, para que ela não consiga pensar em nada a não ser sobreviver por mais um dia”, explica. O planejamento meticuloso seria necessário, também, porque vários campos não eram compostos apenas de prisioneiros judeus, mas também de prisioneiros de guerra, por exemplo. “Os judeus eram civis, despreparados, mas o prisioneiro de guerra era treinado, poderia reagir e organizar uma revolta”, diz.
Foto: Divulgação
Em relação aos prisioneiros não-judeus, Julio relembra as diferenças entre cada campo. “Nos campos de trabalho, havia também criminosos comuns, prisioneiros de guerra, e os presos políticos, considerados inimigos do regime nazista. Cada um usava uma faixa de cores diferentes no braço, para identificar a qual grupo pertencia”, conta. A partir de 1942, começaram a surgir, em massa, os campos de extermínio, para os quais eram enviados apenas judeus. Nesses campos, havia apenas a câmara de gás e o crematório – diferentemente dos campos de trabalho, em que os prisioneiros eram forçados a trabalhar, morrendo em decorrência da exaustão e desnutrição extrema.
No entanto, Julio diz que não guarda mágoa nem ressentimento. Para ele, é preciso seguir em frente, mas sem jamais esquecer o que aconteceu. “Histórias terríveis se repetem no mundo diariamente. Por isso eu gosto de encarar isso como a minha missão, a de divulgar para os mais jovens o que aconteceu”, diz. Pode parecer que o Holocausto agora pertence apenas às páginas dos livros de História, mas não devemos esquecer que ele começou há pouco mais de 70 anos – tempo muito curto para que a ferida tenha cicatrizado por completo. “Os mais fracos precisam ser amparados pelos mais fortes, e devem ser defendidos em todos os sentidos. O que aconteceu no Holocausto não pode voltar a acontecer jamais.”