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Redação nota 1000 no Enem cita documentário disponível na Netflix

Minissérie "Guerras do Brasil.doc", que reflete os principais conflitos armados da história do país, foi utilizada como repertório no texto

Por Luccas Diaz
Atualizado em 18 abr 2023, 14h50 - Publicado em 17 abr 2023, 16h27
Cena do documentário "Guerras do Brasil.doc" mostra mulher indígena de braços abertos, em frente a batalhão da polícia.
 (Netflix/Reprodução)
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Ana Alice Teixeira Freire, de 17 anos, foi uma das candidatas que garantiu uma nota 1000 na redação do Enem 2022. A estudante de Fortaleza (CE), que agora cursa Jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentou um rico repertório cultural sobre o tema proposto na última edição, “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil“. Uma das referências presentes na dissertação, inclusive, é uma série documental disponível na Netflix.

Ana Alice Teixeira Freire é uma mulher de 17 anos. Tem cabelos castanhos ondulados, usa óculos de grau e está com o uniforme do colégio. Ela sorri para a câmera.
A candidata nota 1000 no Enem 2022, Ana Alice Teixeira Freire (Ana Alice Teixeira Freire/Reprodução)

A produção, “Guerras do Brasil.doc“, reflete em cada episódio sobre um conflito armado de grande relevância para a história do país. O autor e ativista indígena Ailton Krenak, também citado pela estudante no texto, é o entrevistado do primeiro episódio, em que analisa diferentes perspectivas da colonização portuguesa.

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Para analisar as escolhas textuais da estudante, o GUIA DO ESTUDANTE convidou Nelândia Teodoro, professora de Redação que deu aula para Ana Alice durante seu Ensino Médio no Colégio Master, em Fortaleza.

“A redação da Ana Alice tem muitas qualidades, mas, sem dúvidas, a principal delas é a excelência do projeto de texto. Futuros candidatos devem observar o processo autoral da candidata, pois ele é bastante inspirador”, adianta a professora. Uma dica de ouro para se dar bem na redação do Enem é justamente ler outros textos nota máxima.

Confia abaixo a redação na íntegra da estudante e, em seguida, os comentários da professora para cada parágrafo.

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Espelho da redação da estudante Ana Alice Teixeira Freire, nota mil na redação do Enem 2022
(Ana Alice Teixeira Freire/Arquivo pessoal)

Introdução

Na minissérie documental “Guerras do Brasil.doc”, presente na plataforma Netflix, o professor indígena Ailton Krenak propõe a reflexão acerca da dizimação dos povos originários a partir de perspectivas atuais, em que é retratada a história sob o olhar do esquecimento e da violência contra esses povos, a despeito da sua riqueza cultural e produtiva. Essas formas de desvalorização das comunidades tradicionais do Brasil são respaldadas, dentre outros fatores, pela invisibilização histórica desses atores sociais no ensino básico e pelo preconceito que rege o senso comum. Dessa forma, é imprescindível a intervenção sociogovernamental, a fim de superar os desafios mencionados.

O parágrafo de introdução deve, com muita clareza, demonstrar que o candidato conseguiu captar o aspecto problematizador inserido no enunciado da proposta de redação, isto é, o cerne da questão, aquilo que, de fato, a banca elaboradora considera um problema. No caso da proposta colocada no último Enem, o candidato deveria explicar o que obstaculiza a valorização das comunidades e povos tradicionais no Brasil, por exemplo, quilombolas, indígenas, ribeirinhos e caiçaras.

Ana Alice explorou, para demonstrar essa compreensão leitora uma minissérie que apresenta, de modo documental, vários conflitos que ocorreram ao longo do desenvolvimento do Brasil, destacando aquele que a interessava para a discussão do tema: a violência praticada contra as comunidades e povos tradicionais e o esquecimento ao qual foram relegados.

Para desenvolver seu projeto de texto, ela destaca, como fator que desafia a valorização dos povos originários, a invisibilização da história deles nas escolas de ensino básico e o preconceito gerado a partir dessa invisibilização. Ressalta, também, que é preciso superar esses desafios.

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Observem a palavra grifada na contextualização do repertório que introduziu o texto. Ana Alice voltou a esse termo ao longo do raciocínio que desenvolveu no texto. Isso demonstra não só a consciência do que ela precisa fazer para um bom projeto de texto mas também a perfeita noção da produtividade do repertório sociocultural. Ana Alice sabe exatamente qual o propósito dele em um texto autoral.

Desenvolvimento 1

Com efeito, cabe destacar a exclusão generalizada dos aspectos históricos e culturais referentes às etnias tradicionais dentro do sistema educacional como fator proeminente à perpetuação da desvalorização do grupo em questão, uma vez que, sendo a escola um dos núcleos de integração social e informacional, a carência de estímulos ao conhecimento dos povos nativos provoca desconhecimento, e consequentemente, o cidadão comum não tem base da informação acerca da indispensabilidade das comunidades originárias à formação do corpo social brasileiro. Nesse sentido, os versos “Nossos índios em algumas poucas memórias/Os de fora nos livros das nossas escolas”, da banda cearense Selvagens à Procura da Lei, ilustram uma construção do ensino escolar pautada no esquecimento dessa minoria, de maneira a ampliar sua desvalorização. Assim, é constatável a estreita relação entre as lacunas na educação e o fraco reconhecimento dos povos e das comunidades tradicionais.

Ao dar prosseguimento ao projeto de texto iniciado no parágrafo de introdução, Ana Alice explica ao leitor de que modo a invisibilização da história das comunidades e povos tradicionais desafia a valorização deles. Nessa explicação, deixa claro que, se a escola não conta a seus alunos a história dos povos originários, vai gerar um cidadão que desconhecerá a importância desses povos para o país. Ao abordar o “cidadão comum”, Ana, inteligentemente, abre caminho para aquilo que ela falará no Desenvolvimento 2 (esse cidadão comum, devido à desinformação, direcionará preconceito aos povos nativos).

Escolhe para repertorizar a ideia de invisibilização desenvolvida por ela os versos de uma música que fala: esses povos estão fora dos livros da escola, por isso estão apenas em algumas das nossas poucas memórias. Observe: se eles estão fora dos livros da escola, se estão em algumas das nossas poucas memórias, eles estão esquecidos. Lembram da palavra grifada na contextualização do repertório de introdução? Ana Alice retoma essa ideia com esse segundo repertório e, com isso, mostra que sabe exatamente aonde quer chegar com o projeto de texto. Ela fecha o parágrafo enfatizando o enfraquecimento de um reconhecimento que, segundo ela, ocorre por lacunas educacionais.

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Desenvolvimento 2

Ademais, vale ressaltar o preconceito cultivado no ideário popular como empecilho à importância atribuída aos povos nativos, posto que, em decorrência da baixa representatividade em ambientes escolares, como mencionado anteriormente, e do baixo respaldo cultural, marcado por estereótipos limitantes e etnocentristas, isto é, que supõem superioridade de uma etnia em relação à outra, há formação de estigmas sobre pessoas dessas minorias e, por conseguinte, não há o reconhecimento de suas ricas peculiaridade. Seguindo essa linha de raciocínio, é possível estabelecer conexões entre a atualidade e a carta ao rei de Portugal escrita por Pero Vaz de Caminha, no momento da chegada dos portugueses ao Brasil, de forma que a perspectiva do navegador em relação ao indígena, permeada de suposta inocência, maleabilidade e passividade, pouco alterou-se na concepção atual, evidenciando a prepotência e a altivez que são implicações da ignorância e do silenciamento das fontes tradicionais. Então, são necessárias medidas de mitigação dessa problemática para o alcance do bem estar da sociedade.

No Desenvolvimento 2, a candidata discorreu sobre o modo como o preconceito compromete a valorização dos povos em questão, e, conforme já foi antecipado na análise do Desenvolvimento 1, ela trouxe a estigmatização dos povos originários como uma consequência de o sistema educacional não contar a história desses povos. A forma como ela uniu os dois elementos problematizadores da tese dela – no início do terceiro parágrafo – foi, no meu entendimento, sensacional! Ela explica que esse preconceito existe porque há etnias que se sentem superiores a outras e, para promover um melhor entendimento desse etnocentrismo, usou muito bem a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, um momento histórico em que o colonizador já se referia aos colonizados com a altivez que gerou essa falácia da superioridade de uma etnia sobre a outra, o que, de acordo com a explicação da candidata, alcança os dias atuais.

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Conclusão

Em suma, entende-se o paralelo entre a desvalorização dos povos nativos e o apagamento histórico destes, além do preconceito sobre este grupo, de modo a urgir atenuação do cenário exposto. Para isso, cabe ao Ministério da Educação a ampliação do ensino histórico e cultural do acervo tradicional, por meio da reformulação das bases de assuntos abordados em sala de aula e da contratação de profissionais dessas etnias, com o objetivo de pluralizar as narrativas e evitar a exclusão provocada por apenas uma história, em consonância com o livro da escritora angolana Chimamanda Ngozie Adichie “O perigo da história única”. Também, é papel dos veículos culturais, como a mídia, a representação ampla e fidedigna desses grupos, com o fito de minorar a visão estigmatizada que foi construída. Com isso, o extermínio simbólico denunciado por Krenak será minguado.

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A candidata inicia o processo de conclusão do texto fazendo uma retomada da problematização que deu início ao projeto de texto. Traz todos os elementos exigidos pela competência 5, mas, mais que isso, foge de clichês. Vale a pena olhar a inovação que ela fez no detalhamento. Escolheu detalhar a finalidade, o que dificilmente se vê no Enem. Ousadamente, colocou como detalhamento uma obra muito conhecida: “O perigo da história única“. E o que ela nos diz, de modo implícito, com esse detalhamento? Que a escola não está dando voz aos povos originários.

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Ainda temos, no Brasil, a história única, contada a partir da visão do colonizador, uma visão altiva, prepotente, como ela afirmou no D2. Isso, obviamente, desafia a valorização das comunidades e povos tradicionais. Para arrematar essa excelente argumentação, a candidata retoma o repertório de introdução, faz alusão à fala de um representante dos povos originários e dá voz ao extermínio simbólico denunciado por ele. Tudo nesse texto se encaixa com perfeição.

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