A literatura está censurada?
Debate sobre como preconceito e sexualidade são tratados em sala de aula volta à tona com a proibição de livros em escolas
Em São Paulo, o Tribunal de Justiça proibiu em novembro que o livro Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, da Editora Objetiva e organizado pelo professor Ítalo Moriconi, fosse distribuído nas escolas públicas do estado.
A ação surgiu a partir de reclamações de cerca de 40 pais revoltados com o conteúdo do conto de Ignácio de Loyola Brandão "Obscenidades para uma dona de casa". As reclamações foram feitas ao Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Inadec), que é presidido pelo deputado federal Celso Russomano (PP-SP).
Dezoito mil exemplares foram entregues a partir de agosto a estudantes do último ano do ensino médio, como parte de um kit que inclui também Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen e O Canto Geral, de Pablo Neruda. O kit faz parte da iniciativa "Apoio ao Saber", que desde 2008 entrega três livros para estudantes de 6ª a 9ª série e dos três anos do ensino médio. Para cada série há livros diferentes.
"Recebi diretamente uma quantidade grande de reclamações de pais, que leram o livro dos filhos em casa e viram uma série de pornografias, que estava além do limite. Num primeiro momento, achei que fosse exagero da parte dos pais. Mas quando um deles me enviou uma cópia do livro e comecei a ler trechos, percebi que era inadequado", diz Celso Russomano. "Não sei quem os elegeu. Os contos até podem ser ótimos. Mas não são adequados para essa faixa etária", afirma.
O livro reúne textos de autores brasileiros publicados a partir de 1900, entre eles Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector.
Os livros que já foram entregues não poderão ser mais recolhidos. Mas escolas com exemplares não entregues deverão devolvê-los e não poderão distribuir mais nenhum exemplar, sob risco de ser multada em R$200 por livro.
Para o escritor e jornalista Ignácio de Loyola Brandão, a decisão do tribunal é uma censura: "Considero-me censurado por um tribunal e por um deputado. Ele, que trata de defesa do consumidor, de repente decidiu se envolver com moralismo e literatura. É uma hipocrisia, é uma volta à Idade Média. Não parece que estamos em 2010, que Viagra, camisinha e anticoncepcional são vendidos livremente em farmácias", afirma.
Para Russomano, impedir que o livro seja distribuído em escolas não significa censura: "censura é tirar o livro de circulação, não fiz isso. Só não quero que esteja em escola pública para jovens. Virei para alguns educadores e questionei se eles leriam aqueles contos para seus filhos. Não me responderam", diz.
O deputado conta que, se houver recurso e o caso for para o Tribunal Superior de Justiça (TSJ), o Inadec continuará defendendo sua atual posição. "Estamos fazendo cumprir diretrizes presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente. A questão é respeitar a lei. Para mim, os educadores que montaram o plano do governo de adotar o livro nas escolas não leram os contos. Porque até agora nenhum deles está defendendo publicamente suas escolhas", conta.
"Foi uma decisão arbitrária e infeliz. Uma desgraça. Queria descobrir e entender o que move a decisão de algumas pessoas. Durante a ditadura a censura era oficial. Agora, numa democracia, parece que voltou a ser", lamenta Loyola Brandão.
Racismo?
Outro episódio polêmico aconteceu em setembro, no Distrito Federal, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou um parecer que vetou o uso em escolas públicas do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, alegando ter conteúdo racista. O livro fora distribuído em escolas públicas do Distrito Federal como parte do programa de bibliotecas do Ministério da Educação.
O parecer do CNE afirma que a obra só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil.
A obra já incluía uma nota envolvendo questões ambientais, ressaltando que o livro fora escrito numa época em que os animais não eram protegidos no Brasil. O parecer do CNE lembra que, entretanto, não há uma nota para contextualizar questões raciais:
"Todavia, o mesmo cuidado tomado com a inserção de duas notas explicativas e de contextualização da obra não é adotado em relação aos estereótipos raciais presentes na obra, mesmo que estejamos em um contexto no qual têm sido realizados estudos críticos que analisam o lugar do negro na literatura infantil", diz.
Na sala de aula
A professora Maria Stela Graciani, coordenadora do curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), considera que mostrar a diferença entre o contexto atual e o no qual o livro foi escrito é essencial:
"A juventude vive a sua própria realidade, a sente de maneira única, está num outro contexto. É preciso mostrar essa diferença de momento e trabalhar com isso. O importante é trabalhar os textos com consciência crítica, fazer com que os jovens tenham uma opinião ativa e cidadã, discuta aquilo junto com o seu educador", diz.
Sobre o caso do conto de Loyola Brandão, Graciani acredita que há interesses para deslocar o centro da discussão: "Ninguém questiona e debate a qualidade da escola, do ensino brasileiro, que não está preparado para lidar com essas questões. A situação da educação brasileira está crítica, basta ver os resultados no Pisa. Não pensam que a escola poderia melhorar para lidar melhor com essas situações. Simplesmente proibir um livro é reducionista".
A professora questiona também a reclamação dos pais sobre o conteúdo e ressalta que a educação também acontece em casa:
"Agora eu pergunto a esses pais se eles fizeram reclamações sobre as novelas que deixam seus filhos assistirem, se reclamaram do BBB, da Fazenda, do que acessam na internet. Pais e mães precisam repensar a estrutura social de engajamento e socialização. Os jovens não aprendem só na escola, mas também em casa, no cotidiano. Questões como preconceito e sexualidade começam a ser debatidas em casa".
Rodrigo Priante Ugá, professor do ensino médio do Colégio Estadual Dib Audi, em São Paulo, e mestrando em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP concorda que o docente precisa estar preparado para trabalhar com textos que envolvem questões sobre sexualidade e preconceito, sabendo analisar criticamente o contexto com os alunos.
"Estranhei que ninguém falou de outros temas que não os sexuais. Há contos naquele livro que tratam de uma violência extremada, por exemplo. Isso não foi alvo de reclamação dos pais", diz.
Sobre o livro de Monteiro Lobato, Ugá acredita que não faz sentido acusar literatura de provocar racismo. "O caminho é a discussão com os alunos, ouvir suas opiniões. O livro tem conteúdo considerado racista, sim. Mas o racismo presente serve para mostrar que isso existe numa certa realidade, no contexto do livro. O fato de o escritor ter escrito esse tipo de coisa não é um incentivo necessariamente, mas pode ser uma crítica, uma denúncia", analisa.
Para ele, a questão de incluir notas explicativas é controversa. "Se incluir a nota em um texto, pode-se incluí-las em qualquer outro. E pergunta-se: quem serão as pessoas responsáveis por escrever tal nota? De que maneira escreveria? Quais serão os critérios?".
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