Uma das grandes discussões no campo da Educação em 2022 é a revisão da Lei de Cotas, prevista desde sua criação em agosto de 2012. Durante esses 10 anos, a ação afirmativa em questão possibilitou o acesso de milhares de estudantes pretos, pardos e indígenas, pessoas com deficiência, e oriundos de escolas públicas em universidades federais. O cenário ainda é muito incerto, mas possíveis mudanças na política de cotas têm movimentado tanto argumentos favoráveis como contrários.
Neste texto, o GUIA DO ESTUDANTE explica o que a revisão pode implicar e quais são os principais pontos deste tema.
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Como funciona a Lei de Cotas
A Lei nº 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas, foi sancionada no dia 29 de agosto de 2012. À época, ela estabelecia que nos quatro anos seguintes, até 2016, todas as universidades federais reservariam progressivamente vagas até atingir 50% das matrículas por curso e turno dedicadas a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Destes 50%, metade seria destinada à população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita.
Mas a Lei de Cotas estabelece ainda uma outra divisão entre as vagas reservadas, que se tornou o tema mais disputado em torno da legislação: a étnico-racial. Segundo o texto, as vagas reservadas deverão ainda ser subdivididas entre pessoas pretas, pardas e indígenas (agrupadas na sigla PPI), pessoas com deficiência e o restante dos egressos da rede pública que não se encaixam nestes requisitos. Essa distribuição deve obedecer à proporção destes grupos na unidade da Federação onde está situada a universidade ou instituto federal, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em entrevista ao portal Ecoa, do UOL, o professor Paulo Vinícius Baptista da Silva, superintendente de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ressaltou que, com a expansão das universidades públicas entre 1960 a 2000, houve uma exclusão quase que completa da população negra nesses espaços. Por meio das cotas, pretos, pardos e outros grupos passaram a ser atendidos, apresentando um resultado positivo em termos de diversidade na graduação.
A inércia do MEC e o apagão de informações
Desde a sua sanção em 2012, ficou estabelecido que, após dez anos da política afirmativa, deveria ser feita uma avaliação com os resultados obtidos na década. “A política de ações afirmativas é sempre feita de forma temporária. O objetivo dela é corrigir uma desigualdade, uma distorção”, destacou o então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, na ocasião.
Um dos debates que caberia uma década depois, portanto, é se a Lei de Cotas já cumpriu integralmente seu propósito. Para uma comissão de juristas criada pela Câmara dos Deputados no final de 2021, a resposta é negativa.
O grupo, articulado para propor mudanças na legislação de combate ao racismo estrutural, entregou o seu relatório final em novembro e um dos pontos era, justamente, a política de cotas. Segundo a comissão, apesar do crescimento no ingresso de estudantes negros e indígenas, “não é possível dizer que o objetivo da Lei de Cotas tenha sido atingido, pois há elementos que indicam que a porcentagem de estudantes cotistas ainda não se equipara com a dos estudantes que ingressam por ampla concorrência”.
O juristas alegaram ainda que há uma falta de monitoramento centralizado da política de cotas. Os dados são imprecisos e, por isso, o debate sobre as mudanças nesses critérios pode ser prejudicado.
O argumento é respaldado por um estudo técnico recente sobre a política de cota do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ) e da União Nacional dos Estudantes (UNE). O documento aponta que desde 2016, nem o Ministério da Educação ou outro órgão do governo realizam ações de acompanhamento estratégico dos resultados do sistema de reserva de vagas. “O MEC deveria ter relatórios com evidências para orientar a revisão da lei de ações afirmativas, conduzindo assim um debate qualificado entre a sociedade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”, defende o documento.
Márcia Lima, professora do departamento de sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do Afro-Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) afirma em entrevista ao Jornal Nexo que, apesar do esforço de intelectuais e da sociedade civil em levantar dados sobre o tema, o cenário não é favorável para a revisão da Lei de Cotas. “Não se pode revisar algo sem ter avaliado seus resultados. E o governo não fez a sua parte.”
A revisão da Lei de Cotas em disputa
Diante desse cenário, parte dos especialistas e pesquisadores acredita ainda que uma década é pouco tempo para avaliar os impactos de uma ação afirmativa. Diversos projetos de lei – 1788/2021, 5384/2020, 3422/2021 – tentaram transferir a revisão do programa para o futuro, em períodos que alcançavam até 50 anos.
Parlamentares defensores da lei também pedem o adiamento da revisão devido às eleições do segundo semestre de 2022. O receio é que, em um cenário em que a polarização está ainda mais exacerbada, a discussão vire uma bandeira política.
Em entrevista ao G1, o coordenador de uma comissão especial sobre o tema na Frente Parlamentar Mista da Educação, o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) diz que, com a proximidade do debate eleitoral, há um temor de que as propostas contrárias às cotas raciais prosperem e gerem retrocessos na lei. “Certamente, teremos dificuldade de fazer uma boa discussão com o atual governo. O próprio ministro da Educação já mostrou ser contrário à política de reserva racial”, observou.
Grupos que veem a revisão como uma oportunidade de restringir as cotas apenas a critérios de renda e escola pública já têm se movimentado. O deputado Kim Kataguiri (União-SP), por exemplo, apresentou o projeto de lei 4125/21, defendendo que as cotas devem se restringir à questão socioeconômica uma vez que a Constituição proíbe a discriminação racial.
Em resposta, ativistas do movimento negro afirmam que as cotas são políticas públicas de ação afirmativa de combate ao racismo e uma forma de repor direitos retirados de determinados grupos historicamente discriminados. Afinal, os quase quatro séculos de escravidão no Brasil deixaram, além de um racismo estrutural, desigualdades que persistem com o tempo: pessoas negras ainda são a maioria das vítimas de homicídio no país (77%) e a minoria nas cadeiras das universidades (38,15%), segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Um cenário de incertezas
Apesar de estar suscetível a revisões neste agosto de 2022, a Lei de Cotas não está, exatamente, ameaçada de extinção. A redação da lei afirma apenas que, passada uma década, o texto deveria ser revisado, mas não estabeleceu como esse processo deveria ocorrer e a que critérios obedeceria. Segundo a coordenadora da área de direitos humanos e cidadania da Consultoria Legislativa do Senado, Roberta Viegas, a Lei de Cotas não previu prazo para a sua própria extinção. Isso significa que mesmo sem a revisão, a política de cotas continuará valendo e só pode ser alterada ou revogada por lei.
“A lei permanece em vigor e somente uma lei poderá revogá-la. Acredito que seria necessário, fundamental até, uma ampla discussão prévia à revisão legal, senão essa revisão não necessariamente atenderia às atuais necessidades da população alvo da lei de cotas”, apontou a consultora à Agência Senado.
Outro ponto que não está definido é quem será o responsável pela revisão. O texto original de 2012 previa que a avaliação deveria ser promovida pelo Executivo. Porém, em 2016, essa especificação foi retirada durante uma alteração na redação da lei. O novo texto aponta somente que “será promovida a revisão do programa”, sem mais detalhamentos.
Portanto, a reforma da legislação pode ser iniciativa do presidente da República, de qualquer membro do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal, de tribunais superiores, ou do procurador-geral da República.
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