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Ele saiu da Odontologia, tirou mil na redação do Enem e passou em Medicina

Francisco Roney gabaritou a redação do Enem citando Ariano Suassuna, Gilberto Dimenstein e inspirado pelo exemplo da própria mãe. Leia o texto do estudante

Por Taís Ilhéu
19 mar 2024, 19h00

Há um ano, a vida de Francisco Roney Sousa Coelho, 21 anos, era completamente diferente. Ele vivia em Fortaleza (CE), capital do seu estado, e estudava Odontologia na UFC, a Universidade Federal do Ceará. Já estava na metade da graduação e gostava do curso, mas uma ideia continuava martelando em sua cabeça: e se tivesse tentado mais um pouco a aprovação em Medicina, sua profissão dos sonhos? Resolveu acabar com a dúvida de uma vez por todas. Largou a Odontologia e, em abril de 2023, começou a preparação para o Enem.

Foram meses estudando horas a fio, escrevendo três redações por semana e fazendo simulados aos domingos, oferecidos pelo cursinho que frequentava. Em janeiro deste ano, colheu os primeiros frutos do esforço: acessou as notas do Enem e viu que havia tirado mil na redação. Graças ao desempenho, foi aprovado duas vezes em Medicina, via Sisu (Sistema de Seleção Unificada) e Prouni (Programa Universidade para Todos).

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Em meio às aulas da nova faculdade, Francisco tirou um tempo para contar ao GUIA DO ESTUDANTE sobre sua jornada de preparação para o Enem. Falou sobre os repertórios utilizados no texto, sua reação ao ver o tema e deixou dicas para estudantes que, assim como ele, buscam a aprovação em um curso concorrido.

Inspirado por Suassuna – e pela mãe

De cara, quando abriu o caderno de questões do Enem 2023, Francisco se assustou com a frase-tema: Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. “A gente não tinha acompanhado temas tão extensos como foi aquele, né?”, relembra. Mas depois de ler a proposta com calma, viu que o assunto era mais do que familiar – além de ter treinado com uma temática parecida poucos dias antes, tinha um exemplo concreto do que falava a banca dentro de sua casa.

O estudante afirma a própria mãe foi uma inspiração enquanto escrevia o texto, já que ela cria o filho sozinha, trabalha fora e ainda lida com os afazeres domésticos. “São diversos tarefas que às vezes, até no dia a dia, a gente nem percebe”, pontua.

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Para além da experiência pessoal, o estudante precisou recorrer a pensadores e outros repertórios que embasassem seu argumento. O primeiro deles foi o escritor Ariano Suassuna, autor de clássicos como “O Auto da Compadecida”. Utilizando uma citação de Suassuna, que afirma que o território nacional é dividido em dois países, o dos privilegiados e o do despossuídos, Francisco argumentou que as mulheres cuidadoras fazem parte da parcela da população que tem poucos direitos assegurados, e ainda desconhece quais são eles. “A desinformação”, escreveu, “permite que muitas mulheres fiquem passivas e inativas na busca por seus direitos”.

O estudante também recorreu ao escritor e jornalista Gilberto Dimenstein citando sua obra “Cidadão de papel”, apontando que a sociedade brasileira goza de certos direitos no papel que não são garantidos na prática.

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Expert na Constituição Federal

Independentemente do tema que encontraria na redação do Enem 2023, uma coisa era certa para Francisco: ele teria um artigo da Constituição Federal na ponta da língua para citar. O estudante afirma ter estudado com afinco a Carta Magna brasileira, que legisla sobre os principais direitos dos cidadãos. Decorou artigos sobre saúde, educação, meio ambiente. Acabou citando o 23, “que garante, entre outros direitos, condições dignas e satisfatórias de trabalho”.

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Durante a preparação, o jovem percebeu que a Constituição era uma “citação coringa” no Enem ao ler todas as redações nota mil que conseguiu encontrar na internet. Mas sua estratégia para adquirir repertório passa bem longe da simples decoreba. Francisco aconselha que estudantes leiam os livros clássicos da literatura brasileira e acompanhem de perto o que está acontecendo no país.

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Quatro dicas para quem quer passar no vestibular

francisco roney
(arquivo pessoal/Reprodução)

Não existe fórmula mágica para passar no vestibular – afinal, Francisco fez o Enem nada menos que seis vezes até ser aprovado em Medicina. Depois de tanto estudo, no entanto, o futuro médico tem algumas dicas para quem quer ir bem no exame. Confira:

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  1. Conheça a prova do Enem: “é uma prova até que repetitiva”, argumenta o estudante, afirmando que todos os anos são cobrados, essencialmente, os mesmos conteúdos. Vale a pena folhear edições passadas e compreender o formato das questões.
  2. Faça simulados: todos os domingos, o colégio Ari de Sá, onde Francisco estudava, oferecia simulados. Ele acredita que essa é uma boa maneira de conhecer o Enem e ganhar confiança para o dia da prova.
  3. Não negligencie nenhuma matéria: se você está prestando vestibular para cursos concorridos, como Medicina, Direito e Odontologia, é importante dar atenção a todas as disciplinas. “Todas são extremamente importantes, e você precisa ser bom em tudo”, analisa.
  4. Redação é treino: “É clichê falar isso, mas não tem jeito”, adverte o estudante, “tem que ter muito treino”. Quando se trata de redação, é importante um treino sério e constante. Francisco, por exemplo, escrevia três redações por semana e tinha como meta sempre alcançar, no mínimo, 960 pontos na correção dos professores. Se não conseguisse, reescrevia tudo de novo.

Leia a redação do estudante

Confira, abaixo, o espelho e a transcrição da redação nota mil de Francisco Roney Sousa Coelho.

redação francisco roney
(Inep/Reprodução)

A Constituição Federal, promulgada em 1988, foi esboçada com o objetivo de delinear direitos básicos para todos os cidadãos – como condições satisfatórias de trabalho. Contudo, hodiernamente, esse postulado constitucional é deturpado, visto que o contato com a área trabalhista, por meio do trabalho de cuidado realizado por mulheres, se encontra na invisibilidade e não efetivado na sociedade nacional. Acerca disso, para discutir a questão de maneira ampla, hão de ser analisados os seguintes fatores: as desigualdades no acesso à informação e a inobservância governamental. 

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Em primeiro âmbito, é válido perceber o panorama de assimetria social como fator potencializador da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Segundo Ariano Suassuna, ilustre pensador brasileiro, o território nacional está dividido em dois países distintos; o dos privilegiados e o dos despossuídos. Sob essa lógica, o autor faz um alerta a respeito da desigualdade de renda, de oportunidades e de acesso à informação vigente no Brasil. Nesse sentido, parcela da população feminina, majoritariamente jovem e preta, padece frente à carência de informações relacionadas às garantias de assistência previstas para esse setor trabalhista, pois tem dificuldade em obter meios de comunicação, como o aparelho celular, pelo custo elevado. Esse cenário potencializa a invisibilidade do trabalho de cuidado, tendo em vista que a desinformação permite que muitas mulheres fiquem passivas e inativas na busca por seus direitos, ocasionamento, consequentemente, explorações de jornadas de trabalho exaustivas, muitas vezes, não remuneradas. Dessa maneira, por não reconhecer a importância da assistência e da regulamentação do trabalho, por exemplo, muitas mulheres assumem trabalhos de cuidado sozinhas e na informalidade, conduta que dá margem à formação de diversos problemas, como desgastes físicos e psicológicos, dificultando, assim, o combate à invisibilidade do trabalho de cuidado. É essencial, então, a difusão de informações sobre a assistência para esse setor laboral. 

Outrossim, cabe enfatizar a negligência governamental como um dos principais fatores que viabilizam a invisibilidade do trabalho de cuidado no tecido social. Nesse aspecto, por não investir suficientemente na criação e na implementação de projetos que fiscalizem e promovam assistência para as trabalhadoras de cuidado, o país omite esse impasse do meio comunitário e permite, dessa forma, a continuidade desse infeliz cenário de exploração feminina. Nessa perspectiva, como afirmou o filósofo Gilberto Dimenstein, em sua obra “Cidadão de Papel”, a legislação brasileira é ineficaz, dado que, embora aparente ser completa na teoria, muitas vezes não se concretiza na prática. Prova disso é a escassez de políticas públicas satisfatórias voltadas para a aplicação do Artigo 23 da “Constituição Cidadã”, que garante, entre tantos direitos, condições dignas e satisfatórias de trabalho. Sob esse viés, evidencia-se que a pouca atuação do Estado no que concerne à garantia de condições laborais dignas para as mulheres possibilita, de certa forma, a existência de várias “cidadãs de papel”, no Brasil, uma vez que embora um ambiente de trabalho satisfatório seja um direito constitucional, muitas mulheres sofrem com a falta de assistência ao realizar trabalhos de cuidado. É preciso, pois, como alternativas ao enfrentamento da invisibilidade do labor de cuidado, a reformulação dessa postura estatal. 

Portanto, é nítido que o debate sobre o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil é relevante e precisa ser difundido. Para tanto, urge, que as instituições educacionais, a exemplo de escolas e faculdades, promovam, por meio de verbas governamentais, campanhas e palestras em espaços públicos, validando a importância da valorização do trabalho de cuidado e informando as garantias assistenciais desse setor para a sociedade, visando garantir a construção de uma mentalidade crítica na coletividade. Ademais, cabe ao Ministério do Trabalho desenvolver, em parceira com o Ministério da Mulher, fiscalizações em ambientes de trabalho de assistência, aspirando mitigar formas de exploração de laborais de cuidado. Quiçá, nessa vida, tornar-se-á notável a amenização do infortúnio, e a Constituição será cumprida de forma precisa. 

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